Fui apanhar umas folhas de couve para deitar às galinhas e ao sair da horta dei uma joelhada sem querer com toda a força no muro de cimento, mas mesmo com toda a força, com o joelho direito. Vi estrelas e fantasmas. Fiquei lívido e saltaram-me as lágrimas. Depois comecei a transpirar e pensei que tinha partido o joelho. Uivei alto para dentro e em tom baixo para fora, porque não queria dar parte de fraco, apesar de estar sozinho. Puta que pariu. Praguejei sem vergonha, disse palavrões em voz alta e a seguir, como se não bastasse, evoquei o nome de Deus e pedi-lhe ajuda, mas fi-lo em silêncio, que para mim é a melhor forma de compreender a sua inexistência e ficar em paz comigo e com ele.
Era o primeiro dia do ano, ao meio da tarde.
01 de janeiro de 2023.
Eu não sou supersticioso, mas a dor era forte, fortíssima, pelo que não consegui travar a formação de elementos mágicos dentro do pensamento.
- É um sinal!
Disse-o em suspiro doloroso para o Tonecas, que estava ali com a bola na boca, a abanar o rabo como se nada fosse. Ou, se calhar, não farejou perigo nem gravidade na ocorrência e considerou ridículo o meu ar de sofrimento, debruçado sobre o joelho com um molhinho de folhas de couve na mão.
- O ano começa mal. É um sinal.
O Tonecas, ao que me parece, é ainda menos supersticioso do que eu. Acho que ele não acredita em nada que transcenda a natureza material do universo, mesmo que eventualmente sonhe com o paraíso dos cães e se angustie com a possibilidade do inferno após a morte, ao passo que eu cá aceito alguns aspetos imateriais da vida. São poucos, pouquíssimos, mas ainda assim em quantidade suficiente para manter acesa a fogueira do espírito - esta fogueira que agora me impele a escrever sobre a joelhada que dei com toda a força no muro da horta quando fui apanhar couves para deitar às galinhas no primeiro dia do ano.
- É um sinal.
O Tonecas estava com a bola na boca e tudo nele era um chamamento para a brincadeira. O bicho mostrava-se absolutamente incapaz de compreender o meu padecimento, a minha tristeza, o meu desânimo - logo no primeiro dia do ano, porra! - tal como acontece com as pessoas quando tentam apurar o tamanho do mundo com a régua dos outros, mas depois não concordam com o resultado. A medida está sempre errada. É uma chatice. De modo que, regra geral, só há uma coisa a fazer: assumir o egoísmo e o resto que se lixe.
E no resto - já agora convém lembrar - cabe a Humanidade inteirinha com seus oito mil milhões de percursos trágico-cómicos, cabe a alegria do Tonecas, este cão feliz, sempre disponível para a retoiça, que o meu pai trouxe para casa depois de ter jurado a pés juntos que não queria mais cachorros, porque estava velho e doente e sem pachorra, mas que foi o seu grande companheiro no último ano de vida, e também cabe a joelhada que dei com toda a força no muro da horta quando fui apanhar couves para as galinhas no primeiro dia de 2023.
- É um sinal!
O Tonecas não parava de abanar o rabo.
- Vê-se logo que vai ser um ano excelente! - Ironizei.
E lá fui a coxear ter com a Pat, que estava dentro de casa, e ela foi buscar gelo ao frigorífico e pôs o gelo no meu joelho e eu estava choroso, desmoralizado, abatido, e devo ter dito coisas relacionadas com o apocalipse e o fim dos tempos e outros disparates do género, já não me lembro ao certo, mas acho que puxei o abismo da desgraça que grassa no mundo para perto do meu joelho e o meu joelho transformou-se numa bola de cristal onde se podia ver com clareza todo o horror do futuro.
Três dias depois, contudo, a dor passou e eu já caminhava à vontade.
A Pat olhou para mim com ar de gozo e, como de costume nestas situações, disse:
- Às vezes, pareces uma criança!