MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

30/09/2022 08:00

O presidente avançou para o púlpito instalado no jardim, tirou um papelinho do bolso e começou a falar. Primeiro dirigiu-se aos presentes, enumerando por alto os principais: Senhores secretários, senhor presidente da Câmara, ilustres agraciados. Depois partiu para o discurso propriamente dito, que começava mais ou menos assim:

- Hoje nós prestamos homenagem a pessoas e instituições que são exemplos para todos nós…

A partir daqui deixei de o ouvir, porque outro acontecimento, que decorria em simultâneo nas suas costas, captou a minha atenção.

Uma rapariga bonita e elegante, vestida como uma flor numa manhã de primavera, sentiu-se mal e foi levada para um canto à sombra. Sentaram-na numa cadeira, mas isso não surtiu efeito, pois logo a seguir estenderam-na no chão e o seu cabelo comprido tocou ao de leve na relva do jardim.

Alguém passou por mim apressado, com uma garrafa de água na mão, e eu pensei:

- Aposto que a miúda não come porque tem medo de engordar.

E verbalizei o pensamento, que era já uma sentença, dizendo-o a uma colega jornalista que estava ao meu lado, enquanto ao fundo várias pessoas prestavam assistência à rapariga. Ela continuava estendida no chão e eu pensei que a relva devia estar fresca e essa frescura haveria de a fazer sentir-se melhor, muito melhor, despertando-a de novo para o mundo e para a vida e para o esplendor da sua juventude.

Tudo isto - a intervenção do presidente e o desmaio da rapariga-flor, bem como o meu rápido e infundado veredicto sobre os seus hábitos alimentares - aconteceu em menos de dois minutos. Embora sendo um instante, é tempo mais que suficiente para que tudo tenha princípio, meio e fim. Só a morte é mais rápida, porque nunca tem pressa. O resto cabe inteiro aqui, nestes dois minutos, e o resto é apenas a minha vida.

O que ganhei, o que perdi, tudo o que vi e senti desde que trepei o berço e estatelei-me no chão, a dor esquecida, a dor vivida, os meus amores, as minhas viagens, a família e a saudade dos mortos, a casa do avô antigamente e a sua ruína no presente, tudo isto estava ali, enquanto o presidente falava e a beleza desmaiava e eu a julgava sem fundamento - as vezes em que chorei, as vezes em que ri, cada partida e cada chegada, as bebedeiras, o desgosto, a alegria em ziguezague, minha alma atormentada de tormentos nada, as coisas feias que fiz, a maldade e os maus exames, os preconceitos, a fúria, a raiva, tudo isto estava ali, enquanto o presidente falava e a beleza desmaiava e eu a julgava sem fundamento - a arte e a guerra, a arte da guerra, a política, a religião e o dinheiro, todos os assuntos a que me refiro usando palavrões e são muitos, os assuntos e os palavrões, raios partam, puta que os pariu, filhos da puta, e outros mais esclarecedores que aprendi na rua em miúdo, no princípio da imortalidade, as descobertas, os segredos, os sonhos, tudo isto estava ali, enquanto o presidente falava e a beleza desmaiava e eu a julgava sem fundamento - o medo e a solidão, esta minha solidão inexplicável, quase sem fim, o som dos meus passos no vazio, a tristeza e a felicidade transbordante, o dizer amo-te a quem amo, a sede, a fome, o desejo, tudo isto estava ali, enquanto o presidente falava e a beleza desmaiava e eu a julgava sem fundamento - a forma como a minha cabeça andou à roda, inebriada, quando me apaixonei pela Pat, o nosso casamento na Praia Formosa, a harmonia do dia-a-dia e a sua desarmonia também, a fé, o destino, o que foi dito, o que ficou por dizer e acima de tudo, sobretudo, todo o horror e toda a fortuna que a humanidade consumou durante o tempo da minha vida estavam ali, enquanto o presidente falava e a beleza desmaiava e eu a julgava sem fundamento.

A rapariga dava agora sinais de recuperação e já sorria.

- … Com esperança e com otimismo - disse o presidente.

E, de repente, concluiu:

- Muito obrigado.

Parei a gravação e verifiquei o tempo: 01:43 minutos.

O tempo duma vida.

OPINIÃO EM DESTAQUE
Coordenadora do Centro de Estudos de Bioética – Pólo Madeira
18/12/2025 08:00

Há uma dor estranha, quase impossível de explicar, que nasce quando alguém que amamos continua aqui... mas, aos poucos, deixa de estar. Não há funerais,...

Ver todos os artigos

88.8 RJM Rádio Jornal da Madeira RÁDIO 88.8 RJM MADEIRA

Ligue-se às Redes RJM 88.8FM

Emissão Online

Em direto

Ouvir Agora
INQUÉRITO / SONDAGEM

Qual o valor que gastou ou tenciona gastar em prendas este Natal?

Enviar Resultados
RJM PODCASTS

Mais Lidas

Últimas