MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

DE LETRA E CAL

13/06/2022 07:00

Primeiro o sorriso do meu pai nas escadas, com o casario e o mar ao fundo. Acima dele, um céu que desafiava um azul só possível no ser mais intenso do verão.

Mais abaixo da linha da ternura, os nossos pés no cimento quente e as sombras do baloiço, inquietas.

Algures, o gira-discos e uma voz límpida que canta uma cidade distante com colinas.

Mesmo rente ao coração, esse verão imenso de dias longos, horas que se demoravam e que pareciam querer prolongar uma felicidade agora perfeita. É sempre como se a felicidade fosse perfeita apenas no futuro, quando se olha para trás e tudo parece ter sido certo. O céu mais azul, o sorriso mais pleno, os dias mais quentes e benévolos, a infância tão longa que parecia não acabar.

E, ainda assim, talvez não fosse assim tudo tão perfeito, mas o tempo lima as arestas e deixa apenas o essencial das formas. Esse labor inteligente do tempo que torna a existência passada numa coisa acabada e, nessa sua natureza, com a perfeição do que passa pelo crivo de uma memória seletiva e com necessidade de construir mitos e histórias felizes.

A felicidade que se conjuga no futuro é sempre de um passado já sem o ruído das coisas imperfeitas, já sem o ruído interior das convulsões que pulsam na vida quotidiana e comum.

É nessa perfeição que nos vejo a mergulhar a cabeça na água, com a pele a ganhar uma cor diferente e com os pés a ficarem enrugados da liquidez feliz do verão. É nessa perfeição que nos vejo inacabados como quem está a crescer e a procurar a forma futura. É nessa espécie de perfeição que nos vejo hoje mais verdadeiros do que a verdade de então.

O verão era um tempo mais que perfeito para a felicidade que se havia de sentir no futuro. Sempre no futuro, como se um mergulho permanente na água do verão nos devolvesse a essência mais pura das pedras e de nós mesmos. Iguais como as pedras, felizes e duros como as pedras, permanentes como as pedras, quietos como as pedras, atentos como as pedras. Matéria bruta como as pedras. E, como elas, havíamos de rolar e ganhar formas que não eram as primeiras. Havíamos de chegar ao futuro e aí ficarmos de cabeça virada para o outro tempo agora feliz, tão mais feliz do que foi. Mas o que importa é a ficção que se cria. A ficção feliz que derruba qualquer realidade menos que perfeita.

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