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Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

18/04/2021 07:00

Era o último sobrevivente de uma família inteira, como denunciava o tom baço e alguns riscos. Não sabia bem como é que tinha aguentado tanto tempo, até porque ninguém lhe tinha particular afeição.

Mas foi ficando e impondo-se, mesmo quando lhe evitavam o toque ou desviavam o olhar, com incómodo. Espreitava com os seus vincos simétricos, destacando-se na sua rudeza entre os de pé alto e aspeto distinto.

Deve ter corrido de boca em boca, que era essa assim nesse tempo onde o assético era inimigo da convivência, que se comemorava com jaqué ou americano, consoante a estação do ano, às vezes misturados com laranjada, numa tentativa de agradar as senhoras, que eram quase sempre tristes, como ela.

Dava por si, muitas vezes, absorta, fitando o último, que já fora um em tantos e observava o fundo, de onde lhe acenava o infortúnio.

Não sabia porque é que o conservava ali, talvez para não se esquecer. De como os foi vendo partir um a um, quando o jaqué fermentava em ira e os outros acabavam em mil pedaços, no chão e a parede suja de pingas roxas, às vezes carmim - conforme os anos e o sol, que era o que dava cor à uva - e que depois era preciso lavar com lixívia e lágrimas.

"Não bebas mais", insistia, tão teimosa como o vício que viu crescer à frente à medida que os anos passavam e os copos iam desaparecendo até ficar aquele, um só, testemunha de tanta coisa, algumas memórias felizes, mas onde só parecia caber tristeza.

Às vezes ele dizia-lhe que sim, que tinha sido a última vez, mas nunca aqueles copos - dos quais havia um sobrevivente - serviram para beber água. E a última era só até a vez seguinte.

Perdeu-se nos vincos simétricos, passando os dedos delicadamente como uma carícia em cicatrizes antigas. Pareceu sentir o cheiro a jaqué e era estranho como um copo vazio era capaz de fazer transbordar tanta dor. No fundo, tinham sobrevivido os dois. E por isso guardá-lo-ia para sempre.

OPINIÃO EM DESTAQUE
Coordenadora do Centro de Estudos de Bioética – Pólo Madeira
18/12/2025 08:00

Há uma dor estranha, quase impossível de explicar, que nasce quando alguém que amamos continua aqui... mas, aos poucos, deixa de estar. Não há funerais,...

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