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Artigo de Opinião

ÀS VEZES VOO. ÀS VEZES CAIO

Jornalista

14/02/2021 08:00

Deixei de saber procurar-te dentro da minha escuridão. A minha cabeça não esqueceu, mas a pele não reconhece já o espinho rápido da inocência. A cabeça, agora, não está aqui; ou talvez esteja, pairando, porém, sobre o vulto de um outro corpo. Antes fosse a cabeça, mas é afinal a pele que dói, cheira a angústia e glória enquanto o corpo se arrasta para dentro. Sabes, é por aqui que vamos morrendo, todos, tolos e frios à superfície de um corpo morto.

Fecham-se as portas como os corpos; olhos, mãos e bocas selados sobre a luz. Truz, truz. Ninguém entra, ninguém sai, ninguém fala, ninguém pára, ninguém foge. Daqui ninguém se salva sem um corpo morto, um grito tardio para fora do escuro, um beijo apagado no dorso da mão, vá.

Corro contra o próprio corpo, abro a porta sempre fechada e salto ao largo da primeira ferida. Da noite nasce o primeiro filho, a vida toda num dia todo noite. Meu filho. Da noite funda nasce o perdão, esse animal de juventude que se ergue do fim da boca. Lembrar-te-ás ainda das minhas mãos, da flor pousada no liso sossego dos dias, no cimo das portas e no céu das nossas cabeças?

Eu sei, a vida é uma peregrinação para o esquecimento, mas vamos enchendo o corpo com a ilusão da memória, como se pudéssemos viver à altura dos mortos. Pois eu prefiro a ilusão do milagre, o gesto límpido de esmagar o medo com o peso da cabeça deitada sobre o coração do homem que amo, deixar-me cair do alto da terra sobre a mão antiga. Se eu pudesse, perder-me-ia no silêncio inteiro desta pele que me dói desde os teus olhos. Desde as tuas mãos que vejo de longe, como um milagre destroçado.

Há flores na minha garganta, mas é o espinho que procuro se me sinto adormecer. Estou para amar lentamente; só creio no amor lento, alastrando por dentro do fogo profundo das pálpebras até ao sal. Assim, pura e violentamente. E mesmo que as portas se fechem sem a força do vento, saberei onde sou. Navegarei com os peixes para dentro da minha escuridão, encontrarei entre o sangue, o nevoeiro e as escamas o calor inesperado de não mais te procurar. A delicadeza da mão que fica ao primeiro pouso, a lenta beleza do espinho que se acende depois da flor. O peixe morto que vai beijá-la. É aí. Nessa estação, saberei, por fim, o lugar onde sou esperada.

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