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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

17/03/2023 08:00

É alta de mais - pensei logo, lembrando-me que as mulheres altas sempre me assustaram, por uma razão que nunca consegui explicar muito bem, mas que deve estar relacionada com um complexo qualquer à volta dos meus míseros 1,74 metros de altura.

Ela sentou-se ao balcão ao meu lado, mas com um banco de intervalo entre nós. Pelos vidros, vi a suavidade com que se debruçou sobre o mármore, apoiando o queixo na mão, pondo-se a olhar para a rua com alguma inquietação.

Está à espera de um gajo - disse para dentro, enquanto bebia a cerveja fria.

Como se encontrava agora de costas para mim, olhei diretamente e vi o seu cabelo comprido e ondulado, preso ao nível da nuca, um cabelo formoso, da cor da água de um charco num dia de inverno, e tinha um brilho líquido e fresco. Quando ela se virou para a empregada e pediu um café, eu vi-lhe o rosto inteiro à luz da noite.

É muito nova - reparei. Mas na verdade era uma mulher lindíssima e os seus únicos defeitos transbordavam dos meus próprios medos. Pelos vidros do armário, notei que olhava para mim de vez em quando, sempre com o queixo apoiado na mão, e eu tremia de desejo, mas não era capaz de a fixar nos olhos e muito menos de dizer o que quer que fosse.

Foi então que da rua saltaram duas mulheres que vieram ter com ela. Eram novas e bonitas, mas não tão bonitas como ela. No mesmo instante, alguém me tocou nas costas. Virei-me e era um colega de trabalho, a dizer assim:

- Venho tomar um café e vou jantar a casa de uns amigos com a minha mulher.

Sentou-se ao meu lado e prosseguiu:

- É incrível! Assim, com aqueles gajos, não vamos a lado nenhum!

Eu abanava a cabeça que sim e bebia cerveja e ele sempre a falar:

- Ninguém tem a noção das responsabilidades, nem das prioridades, e o trabalho que se faz nunca é reconhecido. Uma merda! Olha, já estou farto daquilo, tão farto que nem sequer vou trabalhar amanhã. Eles que se lixem!

De repente, apareceu a mulher dele e disse assim:

- Ah rapaz, tá toda a gente à tua espera. Despacha-te.

E ele:

- Já vou, já vou, mas cumprimenta aqui ao menos o meu colega.

Ela estendeu-me a mão e sorriu com uma timidez malvada. Era uma mulher sem graça e eu fiquei feliz por os ver ir embora. Ao mesmo tempo, dei-me conta de que o bar estava vazio. Mandei vir mais uma cerveja e a seguir mais uma, mais uma, mais uma.

Já depois da meia-noite olhei em redor e vi outra mulher sentada ao balcão com um banco de intervalo entre nós. Agora eu já não espreitava pelos vidros do armário. Olhava de frente e ela parecia-me perfeita. Tinha olhos verdes e lábios carnudos, um ar felino e firme, um movimento seguro e misterioso. Acendeu um cigarro, pediu um café e um uísque e ficou ali, olhando-me de soslaio, mas também olhando para a rua com muita frequência. Esta não era alta como a anterior e não me assustava nada, embora parecesse mais perigosa.

Cruzei os braços em cima do balcão e descansei a cabeça neles. Algum tempo depois, talvez dez minutos, talvez meia hora, abri os olhos perante um silêncio estranho e avassalador, um silêncio do fim do tempo, um silêncio do fundo da solidão. À minha frente, do lado de lá do balcão, uma empregada minúscula com cor e forma de réptil, mas não repulsiva, disse-me que o bar já estava fechado.

- Horas de ir para casa - acrescentou.

Cambaleante, atravessei a esplanada deserta e fixei a praça de táxis do outro lado da rua, com os olhos embaciados pelo álcool. Avancei cheio de esperança, mas, pelo caminho, mudei de ideias e de direção. De facto, eu era novo e andava por aí à noite numa grande ventania a tomar copos de bar em bar…

OPINIÃO EM DESTAQUE
Coordenadora do Centro de Estudos de Bioética – Pólo Madeira
18/12/2025 08:00

Há uma dor estranha, quase impossível de explicar, que nasce quando alguém que amamos continua aqui... mas, aos poucos, deixa de estar. Não há funerais,...

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