-Estou, mas quem não pode falar é o paciente. Diz. Aconteceu alguma coisa? Porque estás a falar tão baixinho?
-Chegou mais uma carta para ti. Da polícia.
-Só a carta!? Nem uma flor? Nada?!
-Não. Só a carta. Tive que assinar como recebi.
-Fizeste bem, mãe. Quando chegar vejo!
Desliguei e continuei as consultas. Mentiria se dissesse que não mais pensei no assunto. Volta e meia lembrava-me do raio do "bilhete". Que infração teria sido desta vez…
Mal cheguei para almoçar, a primeira coisa que fiz foi pedir a carta! Abri o envelope a medo. Eu sei que já sou batido nestas coisas, mas sinto sempre aquele friozinho na barriga. É meu! Não consigo ser diferente… Pronto. Assim que desdobrei a folha, comecei logo por baixo. Entidade, referência e, por fim, montante! Ufa. Nada mau. Não chegava a metade do dinheiro que tenho a receber do António Costa! Pensei que tivesse sido algum estacionamento indevido. Era possível. Acontece! Às vezes sujeito-me. É raro, mas sujeito-me. Dou 3 voltas ao quarteirão e, se não houver lugar, largo o carro onde atrapalhar menos. Faço o que tenho a fazer, a correr, e tiro o carro. Está errado? Está. Mas quem nunca?!
Informado do valor, fui ver a data. 10 de fevereiro de 2021! Era uma quarta feira, pelas 17:53. Em plena Via Rápida sentido Oeste/Este - Câmara de Lobos. Não me pareceu descabido. Ando muito para aquelas bandas. O dever chama e o gosto faz ficar…
Mas, afinal de contas, o que de mal teria feito eu para ser multado!? A curiosidade tomou conta de mim e fui ler. "Normas infringidas: Artº 21.º nº1 CE". Fiquei na mesma. Como ficaria o cavalheiro que me autuou se eu lhe dissesse, porventura, que padecia do síndrome de Pappillon Lefèvre. Sua excelência teria que procurar um Manual MSD ou perguntar a quem soubesse. Como não tinha forma de falar consigo na hora, só me restava ler o Código de Estrada. Assim foi. Rapidamente concluí que o tal artigo se referia à "não sinalização, com a necessária antecedência, da intenção de reduzir a velocidade (ou de parar, ou de estacionar, ou de mudar de direção ou de via de trânsito, ou de iniciar ultrapassagem ou de inverter o sentido de marcha)". Piscas, portanto. Bom, que podia eu fazer?! Não tinha como jurar que não me tivesse esquecido de fazer algum sinal luminoso. Às vezes faço-o. Às vezes não.
Só que, qual não é o meu espanto quando, chegado à descrição sumária me deparo com: "No dia hora e local acima indicados, o(a) arguido(a) ter feito uso do sinal sonoro de forma prolongada sem qualquer motivo justificativo". Assim mesmo. Sem tirar nem pôr. Sem vírgula, duvidando do meu género quando antes (mesmo sem pedir que identificasse o condutor) já me tinham tratado pelo nome, com erros ortográficos… Muito mau, eu sei. Mas o que me chamou mesmo a atenção nem foi isso! Foi que no tal Código de Estrada a que eu recorri, o artigo relativo a "buzinas" é o 22.º. Em que ficamos? Qual de nós está errado Sr agente/chefe/ou lá o que for nº613/152269? (Bonito número para um agente da autoridade, já agora). Decida-se. Ou recicle-se. É que desta vez eu não vou cobrar, mas para a próxima eu não ensino de graça.
Não satisfeito, fui ao km 6 ver se o local me "dizia" alguma coisa. É que assim, do nada, não me lembrava. Para além de outras coisas, a memória também já me vai atraiçoando… Não tenho culpa! Jesus perdoa, mas a idade não. Enfim… Chegado ao km indicado tive um déjà-vu. Não era nada mais, nada menos que a saída do Cabo Girão/ Quinta Grande. Naquele dia e àquela hora, reparei que, mesmo à saída do túnel, estava um Toyota azul parado. Reduzi a velocidade e apitei! Assumo. Fui responsável pela poluição sonora, sim. Mas ao contrário do que ficou escrito, eu tinha um motivo! E bem grande. Naquele exacto momento, não coube em mim de contente. Fiquei tão feliz por o ver. Não imagina a alegria que sinto quando isso acontece a tempo de travar… Posso? Ou reduzir a velocidade também é motivo para contra ordenação?
Às tantas é… Enfim. Para finalizar, fica sua excelência informada que toda a vez que eu passar por si, nas mesmas circunstâncias, vou fazer barulho. Seja com buzina, com vuvuzela, de assobio ou mandando tocar os sinos da igreja! Ah, e se quiser fazer alguma coisa, sem ser jogar às escondidas, convido-o a dar uma voltinha pela vila. Trabalho não vai faltar. Custa é mais um bocado, eu sei. Mas lá passar multas, qualquer um passa… Mesmo que confunda os artigos!
Quem eu não quero mesmo que confunda nada é a minha filha do meio. Há dias recebi mensagem da professora dela, num grupo, a pedir para fazer uma pesquisa em casa sobre os direitos da criança. Para além de recorrer à internet e imprimir 2 desenhos, fui comprar um livro. Se há coisa que não nego aos meus filhos são ferramentas para serem melhores… Pelo sim pelo não, aproveitei e li-lhe também os deveres! Não fosse a menina crescer a pensar que a vida era só um "venha a nós". Desses já há que chegue. E não. Nem todos são polícias! Também há deles bons. Juro. Conheço alguns. Palavra de honra.