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Artigo de Opinião

23/05/2021 08:00

Em boa verdade, não é frase que logre passar incólume pelo crivo impiedoso das brigadas da correcção, pois é bem sabido que um homem pode mudar de homem. Subsiste, além disso, um machismo antiquado na identificação do futebol exclusivamente com os homens, como se as mulheres fossem incapazes de sentir o fervor clubístico. Não deixa de ser injusto que esta citação seja tão famosa, quando Galeano nos legou nacos de prosa tão suculentos quanto o que passo a transcrever: “[…] a cidade desaparece, a rotina esquece-se, só existe o templo. Neste espaço sagrado, a única religião que não tem ateus exibe as suas divindades. […] Enquanto dura a missa pagã, o adepto […] compartilha com milhares de devotos a certeza de que somos os melhores, todos os árbitros foram comprados, todos os rivais são trapaceiros. É raro o adepto que diz: “A minha equipa joga hoje”. Diz sempre: “Nós jogamos hoje”. Este jogador número doze sabe muito bem que é ele quem sopra os ventos de fervor que empurram a bola quando ela dorme, da mesma forma que os outros onze jogadores sabem que jogar sem claque é como dançar sem música. […] E então o sol vai embora, e o adepto vai-se. Caem as sombras sobre o estádio que se esvazia. Nos degraus de cimento ardem, aqui e ali, algumas fogueiras de fogo fugaz, enquanto se vão apagando as luzes e as vozes. O estádio fica sozinho e o adepto também volta à sua solidão, um eu que foi nós; o adepto afasta-se, dispersa-se, perde-se, e o domingo é melancólico transformado numa Quarta-Feira de Cinzas depois da morte do Carnaval.” (in “Futebol ao Sol e à Sombra”).

Quanto aos demais componentes do aforismo, política e religião, há já longo tempo que não se incluem no rol das mudanças extremas e improváveis. Na arena política actual, troca-se de bandeira partidária como de roupa interior, tratando-se as ideologias com o mesmo pragmatismo com que Groucho Marx encarava os princípios (“Se não gostar destes, eu tenho outros”). No que respeita à religião, tornou-se um mercado altamente competitivo, no qual uma grande parte dos consumidores (ou dependentes) tem liberdade total de conversão e é cada vez menos fiel.

O futebol permanece, portanto, como a derradeira paixão inegociável e imudável (assim mesmo, com um dê). Não por ser o tal “desporto-rei”, certamente. É muito mais negócio que desporto, bem mais gerador de riqueza do que de emoções. Assim não fosse, e a pandemia teria obrigado a uma total suspensão das competições. Futebol em estádios vazios? Qual é a lógica? Onde fica a alma? Pois… é o vil metal!

Apesar das sucessivas machadadas na sua credibilidade, como a obscenidade salarial, os pornográficos milhões das contratações, a corrupção entranhada, a promiscuidade com a política e as claques infiltradas por extremistas, o que leva pessoas habitualmente sensatas, pacatas e inteligentes a perder a compostura, insultar, berrar, desfazer amizades e construir ódios, por causa de um penalty que o árbitro não assinalou?

Talvez por haver algo de primordial inculcado na memória, a lembrança da mão paterna na primeira ida ao estádio, a cumplicidade do abraço no festejo de um golo ou do brinde emocionado na celebração de um título? Não será, certamente, por serem os “clubes da terra”, quando neles não sobra uma centelha daquilo a que antes soía chamar-se “a mística”, a tal que fazia sentir o peso das camisolas.

Então, se há vietnamitas apaixonados pelo Real Madrid, nigerianos ferrenhos do Manchester United ou moçambicanos fãs do Belenenses, e isso é normal, não será razoável mudar de clube sem ser ostracizado ou apodado de maluco e traidor?

Veja-se o Sporting, que tão justamente se sagrou campeão nacional. É uma história com todos os ingredientes para ser um sucesso: uma equipa “underdog”, candidata “natural” à luta pelo 4º lugar (no entender dos “futebólogos”); um treinador jovem e pouco experiente, que custou um balúrdio mesmo sem ter canudo; um sistema táctico com 3 defesas que foi beber inspiração a Cruijff e Bilardo; um plantel com muita juventude, parte dela oriunda dos escalões de formação, mesclada com alguns valores sólidos (pescados no campeonato português ou resgatados ao banco de suplentes de clubes estrangeiros) e um punhado de veteranos em estado de graça; um percurso quase irrepreensível. Junte-se-lhe a interrupção de um longo jejum (19 anos) na conquista do 19º título de campeão, numa época desportiva marcada pela Covid-19…

Perante isto, qualquer dia ainda chego a casa a dizer: “Querida, mudei para o Sporting…”.

Parabéns aos Campeões!

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