Chega dezembro e, com ele, a obrigação silenciosa de estar bem. As luzes acendem-se nas ruas como se quisessem iluminar também o que trazemos cá dentro, mas a verdade é que muitos passam esta época a tentar sobreviver ao contraste entre o que sentem e o que o mundo lhes pede para sentir.
O Natal tem este efeito paradoxal: enquanto proclama união, evidencia ausências; enquanto celebra abundância, expõe vazios de mesas, de relações, de energia, de esperança.
As redes sociais amplificam essa distância. A cada fotografia perfeita, a cada família coordenada de vermelho, instala-se a sensação de falha. Como se a vida tivesse de caber num molde brilhante, sem espaço para tristeza, ansiedade ou exaustão.
Mas a saúde mental não tira férias no Natal. Pelo contrário: é nesta época que muitas feridas doem mais, seja pela falta de familiares à mesa, seja pela pressão de corresponder a tradições que já não refletem a realidade de tantos.
Vivemos numa sociedade que mudou, mas que insiste em enfeitar tradições como se nada tivesse mudado. O capitalismo transforma a época num desfile de consumo e urgência: compra, oferece, decora, publica, mostra que estás feliz.
E esquecemo-nos de perguntar: e se alguém não estiver?
Não há manual para o Natal real, aquele onde convivem saudade, alegria, ansiedade, amor e cansaço. Há apenas pessoas, cada uma com o seu ritmo, a sua história, o seu silêncio.
Talvez a mudança que precisamos seja simples, embora profunda: permitir que o Natal seja plural.
Permitir que exista Natal para quem celebra e para quem apenas respira fundo.
Natal para famílias grandes, pequenas, escolhidas, ou para quem passa a noite consigo próprio.
Natal sem obrigatoriedade de felicidade performativa.
Se quisermos recuperar algum sentido desta época, talvez devamos começar por aí: validando o que sentimos, seja luz ou sombra; acolhendo quem está a passar por momentos difíceis, sem minimizar; desconstruindo a ideia de perfeição, reconhecendo que tradição sem empatia se torna peso; criando espaços onde a vulnerabilidade não seja tabu, mas ponte.
Porque o espírito natalício não se mede em embrulhos, nem em fotografias impecáveis, nem no cumprimento cego de rituais.
Mede-se na capacidade de cuidarmos uns dos outros, e de nós próprios, com verdade.
E se houver uma nova tradição a construir, que seja esta: a de permitir que cada uma viva o Natal à sua maneira, sem filtros, sem pressões, com humanidade.