Num mundo globalizado, mais do que nunca, é importante uma perspetiva humanista do lugar, com respeito por todos os habitantes, dos mais jovens aos mais velhos, dos que aqui nasceram e dos que para aqui vieram viver e trabalhar, contribuindo para o seu desenvolvimento. É necessário promover a passagem da “cidade em si” para a “cidade para si”, como escreveu Zygmunt Bauman, no fundo, construir uma cidade de afetos feita de respeito e de verdadeiro espírito de comunidade. Num momento em que as conquistas que tínhamos como certas podem facilmente ser-nos tiradas – ferindo os direitos de quem trabalha, diminuindo o nível de vida de uma comunidade que contribui, mas que pouco recebe, negando esperanças aos jovens, fomentando um fosso entre quem goza e quem trabalha, aumentando o desequilíbrio entre os que podem habitar as zonas privilegiadas da cidade e os que são obrigadas a encontrar longe a sua casa –, não há tempo para derivas e cantos encantatórios de milagres impossíveis.
Há, sim, que centrar-se na qualidade de vida, na sociabilidade, no respeito, procurando responder ao ritmo dos seus habitantes no espaço que deve ser a sua casa. Quem não sentiu nos últimos tempos a desumanização do seu espaço, da sua cidade? O sentimento de que estamos a ser esmagados por um paradigma de desatenção, perdidos em desígnios económicos, de interesses e de esquemas que não entendemos, enquanto o espaço deixa de nos pertencer? Talvez a melhor imagem que materializa este sentimento seja a tristeza de não nos reconhecermos mais na paisagem à nossa volta, com o património a ser destruído para ser construído para, e habitado por, fantasmas estrangeiros com poder de compra para manter as casas desabitadas, saber que os filhos vão e não voltam, porque as oportunidades são poucas e nascem com um nome já indicado, e que os que ficam não conseguem comprar a própria casa, com a certeza de que só lá fora se encontra a cura para a sua doença e que do muito que se dá, pouco se recebe.
E vamos aceitando, porque o mundo é assim e porque se vivem formas sem precedentes de ofensa à dignidade humana e de erosão do desenvolvimento da vida que desafiam uma política perdida num círculo vicioso de ofensas, mesquinhices e ataques que parecem ter um único propósito: o da sobrevivência própria nos círculos de poder que permitem, a quem de outra forma seria insignificante, aceder às benesses sociais, profissionais e económicas. Há autores que dizem que a sociedade contemporânea está à beira do colapso, numa perfeita coexistência entre uma sociedade do bem-estar e a dissolução da plenitude da humanidade. As pessoas sentem-se exploradas, perdidas, e refugiam-se em discursos que propagam a destruição, o ódio, os supremacismos, os falsos cristianismos nacionalistas, negando o verdadeiro coração do ser cristão, adormecendo consciências. A democracia não consiste, justamente, apenas nos procedimentos que legitimam os poderes públicos, mas também na concretização dos valores constitucionais da dignidade, da liberdade e da igualdade.
Juntemos a tudo isto o desafio da IA, com o gradual desaparecimento de algumas profissões e o nascimento de outras, com o desafio de maiores disputas de espaço devido ao crescimento da mobilidade, com as cidades a serem locais de trabalho de pessoas que recebem de empresas a milhares de quilómetros de distância, com salários substancialmente mais altos do que os locais, aumentando preços e tornando impossível a vida dos que auferem os salários locais. Não temos ideia de como viverão as pessoas daqui a 50 anos, quais serão os seus empregos, como ocuparão o tempo livre ou a que tecnologia terão acesso. Mas sabemos que uma cidade do futuro deve ser sustentável, desenvolvida a pensar nas exigências e desejos dos seus habitantes. Isto é, explico com mais uma imagem: não podemos construir condomínios imensos quando as estradas continuarão estreitas como o eram no XIX.
Por isso, pensar um município hoje tem de ser planear um município de amanhã, com objetivos que respondam aos horizontes de desenvolvimento. Isto é uma ideia estimulante, porque obriga a projetar, a planificar, a prever. Mas, é um pensamento que obriga ao respeito dos cidadãos, a ter em conta as suas exigências de trabalho, de transporte, de estudo e de habitação. No fundo, há que assegurar que se está a favorecer um estilo de vida sustentável, promovendo o equilíbrio com as pessoas e a natureza, sem destruir a cultura do lugar, sem esquecer o homem e a sua dignidade.