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Artigo de Opinião

AQUINTRODIA

14/10/2025 08:00

Venho surpreender-te.

Talvez pudesse começar: foi hoje que lancei a mão à pena, como era usual em tempos idos, mas já não tenho o jeito...
As letras já me não saem, não consigo juntar sons de sílabas, nem articular palavras em voz.
Zé, vamos comunicar com a emoção que partilhamos pelas nossas mãos, quando se apertam e se acariciam, pelos batimentos do coração, quando nos tocamos, pelos sons que nos transbordam, quando nos ouvimos, pela ternura que nos invade, quando os lábios se roçam num beijo, pelos sorrisos que nos acendem os olhos, quando nos encontramos...
Este «companheiro» que nos surpreendeu, chegou de mansinho: fazia-me repetir vezes sem conta a mesma história; começou a limpar-me as memórias, sobretudo as mais recentes; levou-me a lugares donde não sabia regressar; transformou manobras fáceis em situações confusas; tirou-me a capacidade de colocar na mesa os meus criativos cozinhados; levava-me a repetir, exaustivamente, a mesma canção, e eu até sabia muitas, que aprendi de ti, quando as entoávamos nas passeatas; apagou-me as datas, os nomes de familiares e amigos, de lugares, de objectos.
Recordo as sessões de estimulação, que passei a frequentar, os desenhos de relógios, os sudokus, que rapidamente se me complicaram, passando às sopas de letras, palavras cruzadas ou leituras, que deixaram de fazer sentido...

Mas voltemos essa página, por agora.
Hoje, quero falar-te do dia-a-dia que partilhamos.
É a minha melhor hora, aquela em que tu chegas, de sacola ao ombro, transportando o carinho do lanche que sempre ajeitas com miminhos de que sabes eu gostar. És um querido, como sempre foste nas minhas fragilidades.
Quando pressinto que me trazem para ti, apetece-me cantarolar. Acho que estou famosa pelas canções que vou semeando nos corredores, quando me conduzem para ti.
Saúdas-me, alegre por me ver, pousas nos meus lábios a doçura do teu amor, acaricias-me a cabeça, onde espalhas a energia do reiki que aprendemos a canalizar.
Passeamos pelo jardim, apreciando as dezenas de estatuetas, ou ficando a descobrir, por entre o casario da cidade, as nove igrejas que se avistam do Palacete. Quando passei a ter medo ao caminhar, trouxeram-me em cadeira, que rapidamente conduzias com mestria. Sentia, porém, que preferias andar de mão dada, ou passar o teu braço forte pelas costas: a proximidade aquecia-nos a alma e acelerava o coração...

Assumiste o compromisso de me acompanhar em proximidade, confortado na competência dos profissionais que neste Lar me acolhem e acarinham, quando nos apercebemos que era a mais avisada opção.Uma tarde, conduziste-me ao recanto, donde se abarca a cidade e se acena aos cruzeiros que assinalam a partida com buzinadelas que sobem a encosta e nos conduzem a viagens que tivemos a ventura de usufruir; aí ficou-me gravado o registo da voz grave do nosso filhote, a chamar mãeee, a leveza da nossa neta pousada no meu colo, incentivada pela ternura da nora.
Como sempre, cantaste, eu apenas cantarolei, que já me fogem as letras. Os meus lábios tentam acompanhar-te, mas já sem som, e os meus dedos tremelicam ao ritmo do malhão ou do bailinho.
Às vezes, tenho a companhia da minha irmã mais chegada, que sempre assume a função de melhorar o meu aspeto. É muito solidária, a Bertitas.
Poucos amigos ou familiares me visitam. Não fico magoada, sei que a dificuldade de interacção causa desconforto. Ficamos sem saber o que dizer ou fazer, perante a minha incapacidade de recordar.
Quando pareço ausente, de olhos fechados, estimulas-me a soletrar os nossos nomes, mas já não sou capaz. Desculpa, Zé.
Então, ficamos parados no tempo, a reviver momentos lindos da nossa jornada em comum que, diferente, vai continuando...
Até que finde!

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