Vivemos tempos curiosos. Tempos em que a reputação é capital, onde a imagem é um negócio e a sua gestão é quase um ato de sobrevivência económica. Mas também tempos em que a piada, a ironia e o sarcasmo, servem de válvula de escape a uma sociedade cada vez mais saturada de indignações. No meio deste fogo cruzado, ergue-se o Direito, tentando equilibrar liberdades que não podem ser absolutas, com dignidades que não podem ser intocáveis.
O caso que opõe os Anjos a Joana Marques — uma dupla musical versus uma humorista, num tribunal português — é apenas o mais mediático sintoma deste choque. Não é, porém, um caso isolado, nem exclusivamente nosso: por esse mundo fora, da França dos Charlie Hebdo aos EUA de Larry Flynt, a justiça tem sido chamada a arbitrar onde começa a liberdade de expressão e onde termina o direito à honra.
Os Anjos reclamam mais de um milhão de euros. Dizem que o vídeo satírico de Joana Marques lhes trouxe prejuízos patrimoniais e morais: contratos cancelados, ameaças nas redes sociais, uma humilhação pública difícil de digerir. Do outro lado, a humorista sustenta o que qualquer satírico sempre sustentou: que o humor não é um ataque pessoal, é um bisturi social — ainda que corte, por vezes fundo demais. E que a liberdade de expressão, incluindo a artística, é um valor constitucional que só deve ceder em casos de violência verbal grave, calúnia ou discriminação.
A lei dá razão a ambos. Porque o nosso sistema jurídico (e bem) não consagra direitos absolutos. A honra e o bom nome estão protegidos pela Constituição, mas a liberdade de expressão e a criação artística também.
O que significa que um tribunal tem sempre de fazer um exercício complexo de proporcionalidade: perceber se o humor foi apenas isso — uma forma exagerada de opinião — ou se se converteu num insulto puro, uma falsidade factual capaz de destruir a reputação de alguém.
Não é um teste de gosto, porque o gosto é volátil, subjetivo, quase irrelevante. É um teste jurídico que pondera figuras públicas e privadas, interesse público e mero escárnio, crítica social e humilhação gratuita. Se fosse um teste de gostos, estaríamos perdidos: cada qual ofender-se-ia ao sabor da sua sensibilidade, e a sátira morreria afogada em processos judiciais.
Mas não nos enganemos: também do lado de quem invoca a liberdade humorística há abusos. Vivemos numa era de “likes”, em que o escárnio rende tráfego e o tráfico de indignações dá audiências. Há quem faça humor à custa de boatos, ou de insinuações graves que passam por piadas. Também aí o Direito deve agir. Não é pelo rótulo de “humor” que se podem violar direitos de personalidade ou inventar factos lesivos sem fundamento.
Por outro lado, a sociedade transformou-se num espaço cada vez mais cinzento e intolerante. Cinzento porque a fronteira entre o que é vida pessoal e o que é palco público esbateu-se — todos têm redes sociais, todos expõem a sua imagem, todos são de certa forma “figuras públicas” no seu microcosmo digital.
Intolerante porque qualquer tropeço, qualquer piada mal encaixada, pode despoletar ondas de cancelamento ou processos judiciais milionários. É o risco de vivermos em bolhas hipersensíveis, com menos estofo para o disparate saudável, o sarcasmo incómodo, o riso que dói, mas liberta.
É por isso que o caso Anjos vs Joana Marques é tão importante. Não porque esteja em jogo apenas o saldo bancário das partes, mas porque está em julgamento o espaço da sátira numa democracia que se quer robusta. E também a maturidade de quem vive da sua imagem: a noção de que quem dela faz um negócio tem de tolerar um escrutínio maior, ainda que mordaz.
Nenhum direito é intocável. Nem o direito ao bom nome, se o peso da crítica ou do humor for justificado. Nem a liberdade de expressão, se descambar em ataques infundados que trespassam a dignidade alheia. Este equilíbrio é frágil, mas é nele que assenta o que temos de mais precioso: a possibilidade de discordar, de satirizar, de contestar, sem cair na mordaça — e também sem viver num faroeste em que tudo vale.
No fundo, a sátira é como um cão sem trela: tem liberdade para correr quase por todo o lado, mas se morder sem razão, pode ter de levar com uma correia.