Confesso que, nos últimos anos, o mundo tem sido uma surpresa, mas pela negativa. Nunca perdi a capacidade de me espantar com o mundo, mas esta capacidade é agora um terreno de uma certa desilusão, de um perder a esperança, de um quase não acreditar que existe sempre mais um degrau abaixo na desumanização.
Não me conformo com os extremismos, com a aceitação de um discurso que culpabiliza o outro, o diferente, o estrangeiro, o migrante. Que responsabiliza o outro, o diferente por todos os problemas que já existem e por todos os que virão a existir no futuro, sejam eles reais ou simples ficção que serve a narrativa da infâmia.
Mas, o que mais me surpreende, e novamente pela negativa, é ver o número crescente de pessoas que aceitam este discurso, talvez por ser o mais fácil, talvez porque a teoria do bode expiatório desculpabiliza a todos, talvez porque até serve para apaziguar a morte da esperança, substituindo-a pelo ódio.
A facilidade com que a desumanização cresce em todo o mundo, desde os Estados Unidos à Europa, tem raízes profundas na súbita incapacidade de nos colocarmos no lugar do outro. No lugar do que é diferente, do que é estrangeiro, do que é ilegal por circunstância, do que é refugiado por necessidade.
Temos cada vez uma maior dificuldade de nos imaginarmos fora da nossa esfera pessoal, de nos imaginarmos num plano mais elevado do que a mesquinhez que também nos habita e que, infelizmente, parece estar a ocupar um lugar cada vez maior, empurrando para fora toda a beleza, toda a humanidade e toda a empatia que em tempos fomos capazes de criar e sentir.
É curioso que todas estas mudanças ocorram num mundo onde cada vez menos se lê, onde a arte, a imaginação e a beleza que existe nelas, está a ser relegada para segundo plano num mundo assaltado pela facilidade das redes sociais, onde o primarismo, o ódio e o rastilho da ignorância militante se espalha como fogo em mato seco.
No livro “Ler o Mundo”, Michèle Petit fala da literatura como um jogo com o qual podemos jogar toda a vida, e que possibilita que nos possamos meter “no corpo e nos pensamentos” de seres que diferem radicalmente de nós. “Só a literatura te dará tanto acesso ao que eles sentiram, imaginaram, recearam, mesmo que tenham vivido há séculos, mesmo que habitem em latitudes muito diferentes”. E, ao mesmo tempo, a literatura também serve para apaziguar “esses animais enormes e desconhecidos que por vezes passam misteriosamente rente a nós.”
Quando aqui falo de literatura, falo também de uma capacidade que lhe está associada: a capacidade da imaginação. A imaginação é uma matéria que não serve apenas para o fantástico, serve também para nos imaginarmos no lugar do outro. Serve para exorcizarmos e combatermos falsos monstros e, quem sabe, para melhor combatermos os verdadeiros monstros que, de repente, saíram de debaixo das pedras, dos recantos mais escursos e nos encontraram desprotegidos, frágeis, sem a armadura da imaginação que nos salva da realidade ou que nos prepara para lutar contra ela quando necessário.