MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

Advogada

22/12/2022 08:00

Todas as noites sonho o quanto corria pelas estepes russas, a pé, a cavalo, sentido o frio no rosto, depois acordo e confirmo que o frio no rosto é o que sinto no tanque de guerra onde me meteram sem sequer saber para onde vinha e ao que vinha.

Tenho saudades dos nossos animais, especialmente do Sputnik, espero que deixes o cão continuar a dormir no meu quarto, está frio.

Mãe, tenho fome, só como pão duro com feijão de lata. Há dias uma senhora ucraniana meteu conversa comigo, foi corajosa, geralmente fogem de nós e com razão. Disse que o seu marido e o filho, mais ou menos da minha idade, estavam a combater e que a filha mais nova, adolescente, tinha conseguido fugir para a casa da tia, em França. A pé até a fronteira com a Polónia. Ela não foi porque espera a chegada dos homens. Deu-me sopa quente, aqueceu-me a alma, mais que o corpo, por momentos pensei que eras tu, que a sopa era a tua e que lá fora só o uivo do vento e não o uivo das balas. Mas, não era verdade, sorvia a última colher quando as bombas voltaram, os tiros e tive de sair. Não sei o que aquela mulher pensou, mas como te vi nela, se calhar ela também viu o filho em mim. Não falamos sobre guerra, só comemos, quase em silêncio. Disse-lhe que vivia perto da fronteira com a Mongólia e nem sabia da existência da Ucrânia, que não tinha nada contra eles e que não sabia o que estava ali a atacar ou a defender.

Não sei se matei alguém… disparei o canhão aleatoriamente, só me ensinaram a disparar, não sei fazer mais nada, às vezes descontrola e até para o ar eu disparo. Não sei o que estou a fazer aqui, eu sou apenas um pastor das estepes.

Mãe… a senhora apareceu aos gritos, a correr sem destino, a pedir que a matassem, a se colocar frente aos tanques, a pedir que a levassem, o filho foi atingido e morreu. Tinha 19 anos. A minha idade. Terei sido eu? Terei sido eu? Mãe, quero ir para casa! Quero sair daqui.

Quero que todos os que podem se sentar à mesa com os seus familiares e dormir numa cama quentinha, num quarto silencioso saibam a sorte que têm, e como um único louco, que vive e morre, como todos nós, é capaz de dar cabo disso em poucos minutos.

Neste Natal, guardemos uma oração para os que passam frio, fome e tudo o que a guerra destrói. E que demos graças pelo que temos, mais do que lamúrias, pelo que não temos. Feliz Natal.

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