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Artigo de Opinião

12/11/2022 08:00

Naqueles olhos inteiros, imperscrutáveis, parece querer dizer-me que escreva sobre ele. Há quem os ame e os idolatre e há quem os odeie. Os gatos são dóceis e brincalhões, exímios caçadores, senhores do seu espaço e da sua vontade indomável. Schopenhauer disse que a compaixão pelos animais está intimamente ligada à bondade de carácter. Quem é cruel com as criaturas vivas e sencientes não pode ser boa pessoa. Entendia também que tal sentimento flui da mesma fonte de onde surgem as virtudes da justiça e da gentileza. Por isso, são definidos agora, em lugar de coisas, como seres vivos dotados de sensibilidade e objecto de protecção jurídica. Tradicionalmente, os animais de companhia eram os gatos, os cães e as aves, mas há quem se rodeie de iguanas, lagartos, ratos e até, numa moda mais diferenciadora, de mini-porcos. Confesso que o suíno, seja qual for o formato, se me afigura mais como ingrediente de prato, mas não discuto que se o vislumbre de estimação.

Os animais sempre foram objecto de sevícias, sobretudo os gatos, talvez pela sua menor utilidade para aqueles que pautam a sua vida unicamente pelo diapasão frio da serventia. A crueldade sobre os bichos é uma traição abominável à sua dedicação e autenticidade. Os bichos são leais, tranquilos e não renegam a sua natureza. Reagem com violência por instinto defensivo, mas não conhecem a agressão gratuita e as milhentas facetas negras e intencionais da perversidade humana. O carácter é aquilo que alguém é verdadeiramente quando não está ninguém a ver. Para impedir a propagação, era habitual abandonar ou até esventrar o pobre animal, se se tratasse de uma fêmea e não era incomum nas tricas de vizinhança eliminar vingativamente os bichos com um envenenamento insidioso. Havia um tipo conhecido pelo mata-cães que se divertia por puro sadismo a matar cães e gatos, tendo inclusive um dia dizimado uma ninhada de gatos arremessando-os contra uma parede, até os tristes perderem ensanguentados as suas sete vidas. Mas renegar a natureza do animal, embora menos repugnante, também não é um acto de menor crueldade, como confinar a sua liberdade e cercear os seus movimentos, ou arrancar-lhe as unhas para preservar o sofá ou adorná-lo com uma coleirinha com um guizo que lhe ferva os nervos de cada vez que se mexe, ou até forçá-lo a passear de trela.

O gato da minha infância era como um adolescente rebelde e livre. Ia a casa comer, receber algumas festinhas e dormir. De resto, fazia a sua vida insondável pelos telhados, onde era feliz e servido nos seus instintos sexuais por alturas do cio. Comia do mesmo cardápio que os donos, bebia leite, caçava ratos ou lagartixas se os houvesse e morria em casa sem alaridos ou misteriosamente nunca mais voltava dos telhados. Hoje, resguardado até à exaustão de todos os perigos e doenças, vê-se irremediavelmente privado dos prazeres e da liberdade que a sua natureza intrínseca impõe. É confinado às quatro paredes de um apartamento, o que torna necessário que se o prive dos seus tintins, numa castração que se designa por esterilização. Deve ter uma atenção clínica de rotina, sem comparticipação oficial, unhas cortadas e até adornadas com unhas de plástico coloridas para preservar a mobília e o mais que o seu instinto caçador pode almejar é surpreender uma mosca ou uma traça. Só precisa de comer ração de pacote, de preferência a francesa, a mais cara e é objecto de eutanásia e cremação, sem controvérsias. Tudo com o seu custo. Até o Estado, vigiando a bondade de carácter, vai buscar o seu quinhão em taxinhas e loisinhas.

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