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Artigo de Opinião

6/01/2024 08:00

É meia-noite do dia convencionado ser o fim do ano.

Sentado na varanda, um homem observa impassível o colorido com que o fogo de artifício desenha o céu e o rumor eufórico dos vizinhos. O ribombar dos foguetes afugenta-lhe o gato que se esconde apavorado debaixo de um móvel. Procura em si uma qualquer reacção a todo aquele fulgor e sente-se vazio, indiferente. Há uma estranha sensação de incompletude que o invade, uma arrastada tristeza que a alegria que o circunda não faz apagar. Nada daquilo o empolga, tudo lhe parece repetitivo e sem sentido. É um homem culto e vive só com o gato. Os amigos convidaram-no para desfilar o brilho do smoking e tomar parte na habitual encenação de farra em que se mascara a angústia da existência, mas recusou. Conhece como ninguém o sabor da melancolia das ressacas. O casal da varanda do lado come compassadamente as doze passas e faz um momento de silêncio, a congeminar os desejos que a sua esperança ensaiou.

Dá por si a pensar que neste falso interregno do tempo, parece obrigatório abraçar-se aquele sentimento encegueirado. A eterna esperança na realização de sonhos e desejos, como se a vida começasse de novo naquele dia e com a intervenção divina ou a mera consciência do merecimento e da justiça, tudo se tornasse possível. O amargor da desilusão em que sempre redundou cada desejo, cada apelo, ano após ano, tornaram-no incrédulo. Imagina que os vizinhos peçam vida longa e com saúde para a gozar, ou o dinheiro e as coisas que a possam confortar. Quem sabe a abundância de uma taluda da Santa Casa, para onde está canalizada a esperança de um país sem esperança, que permita abandonar o sonho comezinho das raspadinhas em cuja febre os pobres se desterram. Alguns talvez rezem pela ilusão de um grande amor. Outros ainda por justiça, pela paz, num tempo em que o egoísmo e a predação humana as fazem assassinar. Martela-lhe a mente a ideia de que nada parece valer a pena se a alma não for pequena.

Já nada espera, venha o que vier ou o que tiver que vir, ou não venha. Uma mulher animada pelo vinho grita pela janela: ”Sejam felizes”, deixando pressentir o cinismo empanturrado de sorte que quer unicamente exibir uma qualquer felicidade e que se está a borrifar para a felicidade alheia. Como se alguém esteja infeliz porque quer ou possa escolher não o estar. É o tempo em que tudo impele a persistir, a acreditar, por mais estapafúrdio que seja o desígnio e a vida vai-se transformando numa vivência vesga da realidade.

As redes sociais, na sua hipocrisia ridícula e venenosa, amaciam egos carecidos ou infortunados, incutindo-lhes a miragem da possibilidade, da realização. A própria literatura, a que mais sucesso tem nos escaparates, não é mais do que um almanaque de auto-ajuda para gente carente e insegura, que traduz miseravelmente aquilo que querem e precisam ouvir. Há sempre alguém de olho numa qualquer contrapartida, ou a derramar a falsa misericórdia de quem está confortavelmente sentado naquilo a que os outros aspiram, que procura suscitar nas almas a vontade de nunca desistir porque o eldorado está a um passo de uma conquista teimosa. Desistir tornou-se uma palavra maldita, um estado de espírito odioso. Mas a crueza da vida exige que se conjugue aquele verbo inconveniente. Em lugar de persistir, é preciso também desistir, prescindir, por mais cruel que se possa afigurar. E desistir nem sempre é um sinal de fraqueza ou cobardia, mas outrossim um acto lúcido e apaziguador de coragem.

No seu desencanto, soa-lhe o verso: “Um pouco mais de sol e fora brasa, um pouco mais de azul e fora além, para atingir faltou-me um golpe de asa, se ao menos eu permanecesse aquém”. Estacou-se naquele pensamento e desejou, tantas vezes, ter permanecido aquém. O gato aninhou-se-lhe no colo e ali ficou num silêncio amargurado.

OPINIÃO EM DESTAQUE
Coordenadora do Centro de Estudos de Bioética – Pólo Madeira
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Há uma dor estranha, quase impossível de explicar, que nasce quando alguém que amamos continua aqui... mas, aos poucos, deixa de estar. Não há funerais,...

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