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Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

6/02/2022 03:44

Acompanhámo-la, claro, guardando para dentro a amargura e calando o absurdo do momento. "Para a menina avó uma salva de palmas". No fundo, aplaudíamos o ano que não fazias, pensava, dorida.

Mas as crianças têm sempre uma capacidade de ver as coisas simples e às vezes basta que nos deixemos guiar pela sua mão. Engraçado, que muitas vezes não me lembro ao certo do dia em que morreste, porque não há um dia em que não me morras, mas nunca esqueço o dia em que festejávamos os teus anos, como no poema de Pessoa. "Eu era feliz e ninguém estava morto". E bebíamos chá pela noite dentro, até alguém cair de sono.

No outro dia estava à espera de um exame médico num dos hospitais onde passaste dos últimos dias da vida, mas onde estou em crer que preferiste não morrer, por ser o sítio onde nasceu a tua neta. Era como contaminar uma boa memória, com uma horrenda, impossível e fatal. Uma auxiliar acompanhava, com sorriso, simpatia e paciência, as mulheres para salinhas apertadas, que dariam acesso a uma sala onde receberão um diagnóstico, que pode ser um veredicto. Adivinhava-lhes o nervosismo e a ansiedade. Ou então eram as minhas memórias. Devia ser. Era Dia Mundial da Luta Contra o Cancro, o que me parecia de uma ironia despropositada. A auxiliar na sua bata azul continuava enérgica a encaminhar cada uma para a sua sorte; apeteceu-me abraçá-la e agradecer-lhe quando a vi, tranquilamente, a dizer a um senhor que a partir daí não pode entrar, que era só a sua mulher. Há momentos em que temos de enfrentar o destino a solo. Mas ambos pareceram perdidos.

No outro dia, a pequena ia na rua e atirou: Cheira à avó Luz. Era uma mistura de cheiro a chão de madeira, com plantas e terra molhada e um pouco de doce, pareceu-me. Cheirava a casa. O teu neto confirmou. "Cheirava mesmo, mesmo". E percebi que talvez esteja equivocada. Não me morres todos os dias, vives-me todos os dias. Penso que isso é de comemoração e está a chegar o dia dos teus anos. Talvez te façamos um bolo. Os pequenos vão partir os ovos e atirar farinha para fora de sítio. Ouvir-te-ei sussurrar: "Trabalho de menino é pouco, mas quem o não quer é louco". E com um sorriso anuirei que tinhas razão. Daqui a dois dias dou-te os parabéns. Se for o caso, cantaremos.

Sandra Cardoso escreve
ao domingo, de 2 em 2 semanas

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