MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

8/11/2025 08:00

Há dias em que sonho com bibliotecas submersas. Imagino-as nas cidades antigas, onde as águas cresceram devagar, primeiro nas praças, depois nos degraus, até se instalarem dentro das salas silenciosas. As estantes, rendidas, deixaram que o mar lhes tocasse a espinha. E, no entanto, acredito que os livros continuam a respirar lá em baixo, que cada página ainda liberta pequenas bolhas de ar.

Penso nisso sempre que o planeta parece suspenso entre dois tempos: o que foi e o que ainda tenta ser. O mundo tem agora o ritmo de uma biblioteca noturna, igual à de Alberto Manguel, um espaço onde o conhecimento e o esquecimento se confundem. Às vezes, sinto que vivemos no andar inferior dessa casa e que os livros que sobram são ecos do que não quisemos ouvir.

Há uma beleza trágica nesta imagem. Umberto Eco escreveu que uma biblioteca é também um cemitério de vozes. Eu acrescentaria que é um cemitério que floresce. Sob a água, as capas ondulam como algas, e as palavras libertam-se das margens. É como se a linguagem tivesse descoberto a sua origem líquida. Talvez Virginia Woolf soubesse isso quando escreveu “As Ondas”, onde o pensamento e o mar são a mesma coisa.

As marés que cobrem as bibliotecas não são apenas castigo; são espelho. Rachel Carson avisou-nos, há muito, que a terra se calaria devagar, e que o silêncio das aves seria o primeiro sinal. Agora é o murmúrio das páginas que quase deixamos de ouvir. Mas há sempre uma parte de mim que acredita no que Olga Tokarczuk escreve: tudo no mundo está ligado por fios invisíveis e, por isso, nenhuma palavra se perde verdadeiramente. Mesmo o que se afunda, continua a escrever-se.

Certa noite, sonhei que mergulhava numa dessas cidades submersas. A claridade do sol filtrava-se como pó de ouro sobre as prateleiras. Ao meu lado, nadavam pequenos peixes transparentes: leitores?, memórias? Abri um volume inchado de água e ouvi um sussurro, uma frase intacta: “O mar é o primeiro livro.” Senti uma ternura antiga, uma gratidão sem nome. Pensei em Calvino, em Eco, em Banville, mas também em Clarice Lispector, que teria compreendido esse segredo, pois existir é, afinal, dissolver-se um pouco.

Quando regressei à superfície, o mundo parecia o mesmo, mas havia algo mais leve no ar. Talvez as palavras libertadas lá em baixo tivessem subido comigo, infiltrando-se no oxigénio. Talvez o planeta ainda escreva através de nós, mesmo cansado, mesmo ferido. Gosto de imaginar que, quando tudo o resto falhar, haverá sempre alguém que mergulhe em busca de um livro perdido, e que, ao abri-lo, sinta uma espécie de respiração. Não a do papel, nem a da tinta, mas a do próprio mundo, ainda a tentar contar a sua história.

Viver numa ilha é aprender a olhar o mundo pelas margens. O mar que nos cerca não isola; amplia. Cada horizonte é uma biblioteca por abrir, e cada onda, uma tradução do que ainda não sabemos dizer. Em novembro, quando a luz se deita mais cedo sobre as falésias, sinto o tempo a abrandar, como nas páginas de Ana Teresa Pereira, onde o silêncio e o mistério também são formas de leitura. Talvez seja isso que o mar ensina: ler devagar para compreender o que ainda respira.

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