Caminhamos a passos largos para a última ronda de eleições que temos vindo a acompanhar nos últimos tempos, as eleições presidenciais, marcadas para janeiro do próximo ano. Estas eleições distinguem-se das restantes porque, nelas, votamos diretamente na pessoa. Por essa razão, são as únicas em que, no lugar de um símbolo partidário, surge a fotografia dos candidatos.
Este facto é particularmente relevante, pois reforça a ideia de que o Presidente da República deve ser uma figura suprapartidária, colocando a Constituição Portuguesa acima de qualquer ideologia política e garantindo que esta seja respeitada e cumprida ao longo de todo o mandato. O Presidente da República assegura o regular funcionamento das instituições democráticas, em especial dos diferentes órgãos de soberania, mas não desempenha um papel executivo na ação governativa do país.
Assim funciona o sistema político português. Quando, nos debates, ouvimos defender que o Presidente da República deve ter um papel mais interventivo, estamos, em termos práticos, a admitir que se deve imiscuir nas funções de outros órgãos governativos. Infelizmente, é precisamente isso que se tem ouvido, por exemplo, de André Ventura, que é simultaneamente líder partidário e candidato presidencial, apresentando-se como antissistema, quando na realidade é candidato a tudo e mais alguma coisa dentro do próprio sistema. As incongruências são muitas e perigosas.
Não é por causa do sistema político português que o país não está mais desenvolvido. Podemos criticar opções políticas, podemos apontar aspetos que necessitam de ser melhorados e é para isso que existe debate político e eleições legislativas. Mas estas eleições não são legislativas.
Quando André Ventura afirma que o Presidente da República deve ser mais interventivo na governação e defende uma revisão constitucional para reforçar os poderes presidenciais, está a propor duas coisas: por um lado, diminuir o papel do primeiro-ministro, que passaria a ser secundário, já que o poder se transferiria, pois não é possível ter dois órgãos com as mesmas competências; por outro lado, estaria a transformar o regime português num regime presidencial.
A questão que se coloca é se Ventura concordaria com tal modelo caso não fosse eleito Presidente da República, ou se considera ser o único “ungido” com esse dom de assumir tal papel em Portugal, de ser, tal como a sua referência a Salazar, quem dita como quer e bem entende o futuro de cada português.
Infelizmente, parece que a nossa sociedade começa a perder memória e a aceitar como minimamente legítima a ideia de “suspender a democracia” para que alguém mande em tudo isto. Esquecem-se, porém, de que os ditadores não se preocupam com a justiça ou a equidade, pois por mero interesse próprio, qualquer pessoa pode ser condenada sem culpa.
A Justiça é um órgão de soberania do Estado português e deve ser independente, ainda que possamos criticar a sua morosidade ou a dificuldade de acesso. O que não pode acontecer é o Presidente da República procurar imiscuir-se no seu funcionamento. Infelizmente, é isso que Ventura sugere, ao condenar na praça pública antes mesmo dos tribunais, afirmando que, ao mínimo sinal, mandaria demitir um governante. Ora, tendo em conta que muitas vezes basta uma denúncia anónima, verdadeira ou falsa, para se criar casos políticos, pode ser que um dia venha a sentir na própria pele as consequências desse mesmo princípio.
Tenhamos cuidado com os caminhos que escolhemos. Um Presidente da República que ultrapasse os limites constitucionais representa um risco para a democracia. Portugal precisa de união, não de divisão entre uns e outros.