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Artigo de Opinião

5/03/2022 08:00

Ao deparar-me só com a rapariga que atendia a fila da caixa, perguntei-lhe gentilmente se não estava outro empregado na loja. A moça, com olhar ofendido, respondeu-me rispidamente: "Empregado não tem, tem é um funcionário. E já vem". Logo me apercebi que a moça entendeu a designação de empregado de forma insultuosa e menos digna e embora se tratasse da mesma condição e actividade, funcionário seria o tratamento mais respeitoso e adequado aos seus brios profissionais. Não querendo entrar em debate sobre conceitos do mundo laboral e coibindo-me de lhe explicar que empregado é tão só, e sem qualquer desprimor, quem exerce uma actividade remunerada, aguardei em silêncio.

E fui lucubrando que hoje uma palavra banal pode tornar-se um odioso conceito cujo uso é de evitar, que uma palavra utilizada no seu significado puro e desprovida de qualquer outra asserção ou intenção ofensiva pode constituir uma palavra maldita. Mais do que o significado das palavras, relevante é a representação mental que delas se faz, ainda que errónea, e o modo como pode beliscar sensibilidades.

E não se trata só da ignorância de tomar por insulto o que se desconhece ou do ódio que o medo do que se não conhece ou domina desperta. Há verdadeiramente em geral um pavor das palavras, do seu significado cru, o receio de encarar a realidade subjacente e nua que elas possam traduzir. Para além da verborreia dos políticos, pejada de eufemismos e conceitos politicamente correctos, na ânsia abrangente de agradar e não colidir com as vontades e os estados de espírito de quem representa um voto, há uma necessidade generalizada de escamotear a crueza da realidade, de iludir a verdade com a brandura ou a deturpação das palavras; de usar palavras mágicas que escondam ou reconfortem a realidade, como se se pairasse num universo surreal, onde o encanto dos eufemismos e das palavras domesticadas induza felicidade. Como se não nomeássemos certas palavras deixasse de existir e incomodar aquilo que representam.

Mais do que a crueza dos estatutos, a consciência social ou de si próprio, parece preferir-se viver num limbo de ilusão reconfortada. E tudo se esconde por detrás de eufemismos, como recursos de estilo que procuram suavizar uma ideia por meio de uma expressão mais agradável, na maioria das vezes ridículos e detestáveis. E são incontáveis os exemplos.

O outrora alegre e despreocupado gordo é agora baptizado patologicamente de obeso. Para evitar o agoiro não se morre de cancro, mas de doença prolongada. Para contornar a fragilidade do estado e a coberto da noção de que a saúde já não é só a ausência de doença, deixou de haver doentes para se integrarem na categoria insípida e burocrática de utentes. O querido e poético velho deu lugar à palavra horrível de idoso. Dou por mim a pensar quão patético teria sido o Hemingway ter denominado o seu romance de:" O idoso e o mar". E toda esta encenação eufemística é ofensiva e humilhante porque inculca a ideia de que se trata de realidades tão vergonhosas que têm de ser escondidas por detrás de eufemismos abomináveis. Haverá algo mais dignificante do que a velhice?

E por isso as palavras são destratadas, escamoteadas e a riqueza da língua esvai-se num linguajar uniformizado, enfadonho e medíocre. Um pronto-a-vestir linguístico que insulta o vernáculo e embandeira estrangeirismos apressados que fazem inflamar egos numa ilusão idiota de grandeza ou requinte de uma modernidade vazia, como se houvesse algo mais belo do que a língua de Camões.

OPINIÃO EM DESTAQUE
Coordenadora do Centro de Estudos de Bioética – Pólo Madeira
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