Na Madeira, o Natal não é apenas uma data, é um estado de espírito. Há a mesa farta, o cheiro a carne de vinha-d’alhos, as luzes acesas, a poncha a circular, a família reunida e, no fim, aquele balanço quase ritual: deu trabalho, custou dinheiro, mas valeu a pena porque foi para todos. O Orçamento Regional para 2026, discutido em pleno período natalício, seguiu um outro caminho. Assemelhou-se a uma daquelas consoadas onde a casa está enfeitada, o presépio é luxuoso, mas falta comida nos pratos de quem mais precisa.
Num típico conto natalício há sempre abundância prometida, uma mesa bem provida e a esperança de que todos tenham lugar. Aqui, o enredo é outro... embrulho vistoso por fora, conteúdo pobre por dentro.
As contas públicas brilham como iluminação festiva, mas não aquecem lares frios nem resolvem aflições. Anunciaram um PIB acima dos 8 mil milhões de euros, um excedente orçamental próximo dos 200 milhões e uma receita fiscal em crescimento. No entanto, quando se sai da contabilidade e se entra nas casas reais, o cenário muda radicalmente. A riqueza anunciada não compensa salários curtos, não paga rendas incomportáveis, nem enche frigoríficos cada vez mais vazios. O PIB per capita promete um rendimento anual de 30 mil euros, mas a realidade insiste em viver com rendimentos médios anuais que mal chegam aos 15 mil. Entre a promessa e a vida concreta, abre-se um abismo social que este Orçamento insiste em ignorar.
O Governo regional prefere cantar a abundância, enquanto esconde as personagens incómodas: os 1500 idosos à espera de lar, os milhares sem médico de família e as listas de espera que se arrastam como promessas adiadas, as macas acumuladas nos corredores das urgências, os profissionais exaustos, as cirurgias adiadas, a medicação em falta. Tudo isto num orçamento que prometeu “reforços” orçamentais..., mas acabou por cortar milhões na Saúde. Um milagre de Natal que nunca passou das palavras.
Na Habitação, o sapatinho também ficou vazio: menos 67 milhões de euros para construir casas, num contexto em que a especulação imobiliária expulsa jovens e classe média da sua própria terra. Na Educação, faltam professores e educadores, ao ponto de se improvisar soluções com estudantes universitários. Na Agricultura e nas Pescas, os apoios chegam tarde, a conta-gotas, enquanto as pragas e os custos de produção avançam sem pedir licença.
E, no centro da mesa, surge o prato mais indigesto: cerca de 23 milhões de euros para campos de golfe, ao mesmo tempo que se reduz drasticamente o investimento em áreas prioritárias. Nada me move contra o golfe, mas quando faltam casas, lares, cirurgias e medicamentos, a prioridade parece trocada. Num verdadeiro conto de Natal, o dinheiro serviria para aquecer lares, não para aparar relvados. Com essa verba, poderiam erguer-se mais de uma centena de casas. Mas o Governo prefere investir onde poucos jogam e muitos pagam.
A abundância existe, mas não chega à maioria, enquanto persistem salários baixos, inflação elevada, desemprego jovem, precariedade, impostos elevados, falta de lares e uma crise habitacional que já não é exceção, é regra.
O Governo PSD/CDS teve maioria para decidir... e decidiu. Decidiu chumbar todas as 54 propostas do JPP. Todas. Nem uma migalha para famílias, jovens, agricultores, pescadores, idosos ou trabalhadores. Nem a descida do IVA, apesar do aumento expressivo da receita fiscal e de um excedente confortável. Nem a criação efetiva do Gabinete da Transparência. Nem uma solução para as ligações entre a Região e o continente. Foram todas chumbadas... Todas. Como se o diálogo fosse um incómodo e não um pilar da Autonomia madura que se proclama aos microfones.
Este Orçamento não retrata a Madeira real, mas uma Região imaginada por quem governa há demasiado tempo sem ouvir. E Natal nenhum resiste quando a política insiste em servir fartura a poucos e resignação a muitos.
No Natal madeirense, partilhar é a regra. Quem governa parece ter esquecido isso. E quando a Autonomia festeja 50 anos, convinha lembrar que não há árvore bonita que esconda uma mesa injusta. Porque um Orçamento que não chega às pessoas acaba sempre por deixar um brilho amargo, mesmo depois de um vistoso fogo-de-artifício.