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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

1/09/2023 08:00

Sonhei que a baixa do Funchal tinha sido destruída por um grande terremoto e eu estava parado no meio dos escombros ao pé do Mercado dos Lavradores, agora demolido, quando, de repente, passou por mim uma rajada de vento frio e essa rajada de vento frio arrancou do meio dos destroços um papel, que parecia ser uma fotografia, e esse papel ficou a esvoaçar como uma borboleta diante dos meus olhos, até que percebi que era, de facto, uma fotografia - uma fotografia a preto e branco.

Tentei apanhá-la, mas o vento elevou-a no ar negro e poeirento do meu sonho e arrastou-a para oeste, pelo que dei três ou quatro passos nessa direção de mão estendida.

A fotografia afastou-se ainda mais e atravessou a ponte sobre a Ribeira de João Gomes, que tinha escapado ao abalo, e entrou na Rua Fernão de Ornelas e eu fui sempre atrás dela, galgando ruínas e mortos, fascinado com a sua dança e indiferente à tragédia que se abatera sobre a tão querida e bela cidade do Funchal, como se seguisse um anjo ou talvez um demónio.

Quando eu me atrasava, a fotografia pousava num canto qualquer, que podia ser um emaranhado de ferros, um monte de caliça, um automóvel esmagado, um membro decepado, o corpo inteiro duma criança morta, e ficava à minha espera, como se tivesse vontade própria, como se fosse uma fotografia viva, e quando eu chegava ali e estendia a mão, levantava voo outra vez e seguia viagem, conduzindo-me a bel-prazer como quem conduz turistas papalvos num périplo pela cidade, neste caso uma cidade aniquilada, defunta, espetral.

Por fim, a fotografia dobrou a esquina da Rua Ivens e entrou na Rua dos Aranhas, onde apenas tinha ruído um prédio de quatro andares naquele troço. Esvoaçou de canto a canto e foi pousar sobre um livro que se encontrava no meio da via, um pouco afastado dos escombros. O livro estava coberto de pó e parecia ser o único sobrevivente do prédio de quatro andares - um livro jazendo inconsciente na rua à espera de socorro.

Ao contrário da maior parte da cidade, onde havia grande agitação e aflição, a Rua dos Aranhas estava deserta como num sonho - o meu próprio sonho -, embora lá chegasse o eco de máquinas em ação, de pessoas a gritar, de chamas a crepitar.

Aproximei-me e, desta vez, a fotografia permaneceu imóvel.

Segurei-a entre o indicador e o polegar da mão direita e com a esquerda apanhei o livro.

Era uma fotografia de outro tempo, uma fotografia antiga, como as do Museu Atelier Vicente’s, mas quem lá aparecia estampado era eu, exatamente como sou hoje, com um daqueles cenários magníficos do século XIX em pano de fundo. Na margem inferior, havia uma inscrição, mas não a consegui ler, porque o vento arrancou-ma subitamente da mão, fê-la dar três voltas sobre a minha cabeça e depois levou-a até à esquina da Rua da Carreira e ela desapareceu.

Fiquei com o livro na mão e soprei o pó que cobria a capa preta e dura. O livro não tinha título. Também não havia referência ao autor. Abri-o ao calhas. As páginas não estavam numeradas, mas calculei que não deviam exceder as cem.

Pus-me então a ler e o que li foi precisamente o que estava a pensar e também o que estava a acontecer naquele momento. Li, pois, que o número de páginas do livro não devia exceder as cem e que um mega terremoto tinha destruído a baixa do Funchal dentro do meu sonho. Depois, li que o facto de estar a ler isso num livro de capa preta e dura dentro de um sonho me fazia acreditar que ia enlouquecer, ou seja, que ia ficar louco a partir daquele preciso instante.

Assustado, fechei o livro e acordei com o estrondo.

Por um segundo, pareceu-me sentir uma réplica do grande sismo…

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