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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

9/12/2022 08:00

Ali por volta de 1990, no dia de Santo André Kim e dos seus 102 companheiros mártires, precisamente três meses e quatro dias depois de ter tirado a carta de condução, Maria Goreti, uma rapariga de 22 anos a puxar para o forte, que tinha os olhos de uma cor rara e imprecisa, pois variava entre o cinzento-escuro e o azul celeste conforme a intensidade da luz, conduzia um Ford Fiesta pelo Caminho de Santo António acima em direção à casa de um amigo que vivia nas zonas altas da freguesia e tremia de emoção porque aquela era a primeira vez em que estava sozinha ao volante, ou seja, sozinha a bordo de um automóvel, sem ninguém ao lado a chatear ou a dar apoio, e guiava tão bem que até parecia mentira, mas quando chegou ao cruzamento das Courelas, pouco antes de virar à direita para a Estrada Comandante Camacho de Freitas, deixou o carro ir abaixo e depois nunca mais conseguia retomar a marcha, coisa que impacientou o condutor atrás num Renault Clio e ele pôs-se a buzinar e a gesticular como quem diz:

- Despacha-te, sua cabra!

Maria Goreti deu à manivela e abriu o que faltava da janela, puxou o travão de mão, deitou a cabeça fora e o vento desalinhou-lhe o cabelo loiro, aquele loiro falso que persegue as mulheres de todas as idades em todas as idades, mas ela não ligou nenhuma ao vento e atacou o homem com uma enxurrada de palavrões e uma aluvião de insultos:

- Seu isto, seu aquilo, picha curta, picha mole, vai para o inferno, raios te partam, puta que te pariu, és assim, és assado, filho da puta.

Depois ligou o carro e arrancou com a maior das facilidades, seguindo viagem como se nada fosse.

O indivíduo do Renault Clio, um tipo aí com uns 60 anos, ficou de tal forma surpreendido e desnorteado que até deixou o carro ir abaixo e agora estava com dificuldade em retomar a marcha, pelo que o condutor do autocarro para o Curral das Freiras, que estava imediatamente atrás, começou a buzinar e disse:

- Mexe-te, aselha! Pareces uma gaja!

Maria Goreti tocou a campainha em casa do amigo e no mesmo instante apareceram quatro rafeiros a correr desenfreadamente pela escadaria acima e depois ficaram diante do portão de ferro a ladrar com fúria, metendo os focinhos entre as barras, tentando alcançar-lhe as pernas. Ela agachou-se ao nível dos olhos dos cachorros e começou a atiçá-los ainda mais, parecia que se divertia com aquilo. Os cães acabaram por desatinar uns com os outros e rebolaram pelos degraus abaixo numa luta impiedosa entre irmãos, quando de repente apareceu o dono da casa e levou-os para uma jaula, onde os prendeu, vindo depois acenar-lhe para que descesse.

- Venho buscar o livro - disse ela.

Entraram na sala e nisto os cães começaram outra vez num alvoroço desgraçado, agora com laivos de que se iam matar de facto, pelo que o dono teve de sair apressado.

- Espera aqui que já venho - disse ele.

Maria Goreti tomou a liberdade de passear pela casa, que era pequena, minúscula, e que ela não conhecia, era a primeira vez que estava ali. Foi até ao quarto do amigo. Sentou-se na cama para testar a firmeza do colchão e varreu o espaço com o seu olhar de cor rara e imprecisa. Aqui o guarda-roupa com espelho na porta, ali uma pequena estante cheia de livros e cadernos, acolá uma mesa, em cima da mesa cinco dicionários empilhados, três livros também empilhados, vários papéis manuscritos, lápis e canetas, um frasco de tinta preta e uma capa de papel pardo em formato A4 e esta capa tão simples e opaca atraiu-a como se fosse uma pedra preciosa e cintilante. Levantou-se e foi ver. Estava cheia de folhas em branco, exceto uma, a última, na qual estava escrito à mão em letras maiúsculas o seguinte: DO FIM AO INFINITO.

O amigo entrou no quarto e ela estremeceu.

- É um trabalho que estou a preparar para daqui a trinta anos - disse ele.

OPINIÃO EM DESTAQUE
Coordenadora do Centro de Estudos de Bioética – Pólo Madeira
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