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Artigo de Opinião

GATEIRA PARA A DIÁSPORA

31/08/2021 08:01

Acordo e a rádio oferece-me Luís Miguel Cintra a ler Ruy Belo, e não poderia desejar um melhor retorno a uma outra realidade. Da voz do mesmo Cintra, ouço «Não tenhas medo / O mundo é maior do que aquilo que se vê», que ecoa do filme A Távola de Rocha de Samuel Barbosa, um antigo assistente de Paulo Rocha que o foi procurar onde este procurava os filmes. Isabel Ruth conta que não se lembra de alguma vez ter visto um beijo num filme desse realizador. Seria o próprio acto de filmar um ósculo? Uma questão que também se coloca ao visitar o recém-inaugurado Museu Fellini, em Rimini. Aí, vemos alguns dos desenhos do seu Livro dos sonhos e um amor pelo cinema, pelas pessoas e pela vida. De assinalar que uma das localizações deste museu é uma estrutura circular, numa praça (dos sonhos?), que reproduz a arena de um circo. Quando lá passei, havia crianças que brincavam, famílias que comiam, o mundo que caminhava. É a homenagem mais bonita a Fellini.

Em Rimini, a classe média europeia interage. Uma avó italiana, em todo o seu esplendor, recebia a visita de muitas crianças que iam vê-la e admirá-la numa das praias. Contou-me a minha esposa que ouviu um dos pais incentivar uma das crianças a ir falar com ela pois as avós são um tesouro da humanidade. No álbum Águeda, o vibrafonista Paulo Santo homenageia a sua avó. A senhora Águeda, cujo sorriso na sua banca do mercado em Leiria - na década de 60 - ilumina o frontispício do álbum, iluminou o neto que agora reflecte melodicamente essa mesma luz. O álbum acaba com The First Time I Sang You, que Santo cantou pela primeira vez à filha com poucas horas de vida. Da filha germinará uma avó.

Apesar do contexto de veraneio, e de uma certa despreocupação que ele implica, não foi possível deixar de pensar no Afeganistão, deixado à sua (má) sorte. Da minha curta estada em 2005, lembro-me de pessoas muito afáveis, de meninas que, manhã cedo, enchiam a borda da estrada e iam para a escola. Em suma, havia esperança. Lembro-me também da impressionante hospitalidade dos afegãos com quem lidei - quando havia carne de borrego, ofereciam-na, quando não havia, ofereciam arroz, quando não havia arroz, ofereciam chá com muito açúcar - porque a vida já tem os seus azedumes - mas nunca deixavam de se oferecer (para nos guiar naquela cidade - e nas montanhas circundantes - a mais de 2500 metros de altitude que é Bamiyan). Bamiyan teve a primeira governadora de todo o país - Habiba Sarabi, que viria a ser uma das candidatas às eleições presidenciais, e muito activa nas áreas dos direitos das mulheres, da paz e do ambiente -, não se via muitas mulheres de burca e a minoria Hazara parecia, apesar das dificuldades, poder respirar. Foi-me contado, ao ouvir as celebrações de um casamento, memórias de quem teve de enterrar a sua televisão e o seu rádio pois a música não era permitida durante o regime talibã. Agora, dizem que a música é outra. A gente diz que o disco é o mesmo numa capa que até parece ser bastante igual. A talho de foice, perseguir intérpretes que nos levam numa viagem multidireccional entre saberes e sons variados é perseguir a própria essência da humanidade. Não lhes abrir a porta, sobretudo em estado de necessidade, é negar que o universal entre em nós. O meu eterno apreço à coragem das mulheres afegãs que saíram à rua para dizer que, apesar do nevoeiro, ainda há sol ali. Mais luz (como a dos atletas paralímpicos).

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