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Artigo de Opinião

DE LETRA E CAL

13/05/2024 07:35

Era uma casa habitada em demasia. Cinco crianças que se foram somando ao mesmo espaço. Cinco crianças a crescerem por todos os lados, enquanto que o espaço onde a infância decorria era sempre o mesmo: um território cheio.

No nosso quarto, o beliche era a solução certa. Um refúgio com dois andares, aos quais foi sendo acrescentada uma espécie de conquista territorial própria. Marcávamos as almofadas, os brinquedos, e, um pouco mais tarde, os autocolantes e os posters. Uma espécie de fronteira sinalizada que nos distinguia. Também existiam livros que participavam da disputa.

Aprendíamos, então, o nosso e o lugar do outro. Mesmo no exíguo espaço do beliche, fomos criando território e diferença. Era como ter dois países na vertical. Dois países que por vezes dialogavam e outras vezes entravam em guerra. Fronteiras que às vezes se abriam, mas que também podiam ser muros altos na nossa afirmação de uma individualidade sempre ameaçada pela proximidade.

Foi ali, no território do beliche, que cada um de nós foi crescendo em direções opostas. A rebeldia contra a água do meu irmão, a disputa pela roupa entre as raparigas, o silêncio impenetrável do irmão do meio, e a exuberância confiante do irmão mais novo.

O espaço que unia era também o espaço que dividia. Depressa percebemos que o maior território era aquele que por dentro de nós nos fazia diferentes nas nossas semelhanças.

De alguma forma, fomos felizes no nosso mundo vertical, aprendemos as fronteiras e as pontes, a paz e a guerra, a pertença e o desejo de liberdade.

No território exíguo da casa, havia então dois movimentos distintos que construíam a mesma liberdade: a casa que se mantinha inalterada perante o nosso desejo de espaço, e o espaço por dentro de nós que seria sempre maior do que a soma da casa e de quem nela habitava.

As casas crescem sempre mais por dentro de nós do que na sua materialidade inalterada e inalterável. Crescem sempre mais num lugar onde realmente não existem do que na arquitetura que as construiu.

A casa sempre foi a luz que uns reclamavam acesa e outros apagada; os livros permitidos e os proibidos; o ruído depois do sono nas paredes silenciosas; os medos que, ainda assim, ocupavam o espaço livre, e os sonhos que por entre tudo haviam de ditar a nossa ausência no futuro.

Saltámos à vez do beliche para o mundo: uns de forma pacífica e natural, outros em conflito aceso, outros quase sem se dar por isso.

O território antes povoado ficava cheio da nossa ausência e o mesmo foi acontecendo à casa agora já tão distante. É uma casa outra. Nem sabemos se ainda existem beliches ou outras crianças como nós. Sabemos, contudo, com uma certeza inabalável, que fomos felizes e que, às vezes, durante o sonho, ainda é o céu do teto ou o céu do beliche que nos surge quando abrimos os olhos desamparados de futuro.

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