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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

14/02/2025 08:00

O grande poeta está no escritório a escrever um poema sobre o ato de matar a mulher e a mulher está na cozinha a preparar o jantar. Como dizer que ele a matou? Bem, ele utilizou uma faca de desossar que tinha surripiado do faqueiro pouco antes da mulher chegar a casa e pôr-se a preparar a refeição e como nesse dia ela tinha idealizado fazer um guisado de legumes, uma receita nova, coisa que a pusera a salivar desde o meio da tarde, sempre a pensar no sal e nas especiarias que haveria de deitar na panela, não deu pela falta daquela faca. Estava, isso sim, a manusear a de cortar legumes e fazia-o com enorme destreza, enquanto o grande poeta escrevia um poema sobre o ato de a matar.

Ele aproximou-se devagar por trás, com a faca de desossar em punho, e tudo aconteceu de repente, escreveu o grande poeta, mas ficou logo perplexo com o que tinha escrito, porque lhe pareceu absurda a combinação do advérbio ‘devagar’ com a locução adverbial ‘de repente’. Seja como for, foi assim que a mulher passou da vida para a morte, devagar e de repente, ou seja, à mesma velocidade com que Deus separou a luz das trevas, no exato momento em que cortava a cebola ao meio.

Zás.

A vida vale tanto como uma cebola, escreveu ele. E acrescentou: a vida e a morte são como uma cebola cortada ao meio na hora do jantar. E depois sorriu, pois gostava muito de poesia surrealista e aquele pareceu-lhe um verso visceralmente surrealista.

Mas que palavras usar para dizer isto? Sei lá. São muitas as palavras que se podem dizer. Por exemplo, estava a chover e a chuva falava com eles à medida que caía no mundo. Isto é poesia de merda, pensou ele, mas deixou ficar a frase. A chuva era pesada e abafava o mundo e os gritos da mulher, a mulher a morrer esfaqueada na cozinha com a faca de desossar, um acontecimento que seria relatado nos jornais como homicídio em contexto de violência doméstica, mais um na roda do ano, quando na verdade consubstanciava apenas a expressão artística de um grande poeta.

Ela gritava:

– Porquê

Devia ser uma pergunta, mas o tom era absolutamente imperativo. Era um grito. Por isso, não vou utilizar nenhum sinal de pontuação, pensou o grande poeta e continuou a escrever. Ela gritava muito alto, mas a chuva era ainda mais forte do que os seus gritos. Era a vontade de Deus. Puta que pariu a vontade de Deus, escreveu em modo altamente surrealista. E a mulher morria com grande tristeza em deixar a vida, sendo ainda jovem e bonita, embora a morte seja sempre uma grande tristeza em qualquer idade.

– Porquê

Sem pontuação, pensou o grande poeta e continuou a escrever. Ninguém saberá nunca que ela morreu. Pelo menos, ninguém o saberá enquanto ele próprio não descobrir por que motivo cometeu o crime e de repente lembrou-se do início da relação, há mais de dez anos, quando ela tirava a roupa de forma sensual, provocante, e segurava nas mamas pequenas e dizia:

– Vê como são bonitas.

E logo a seguir dizia qualquer coisa extremamente sexual, mas ele já não se lembra o quê, qualquer coisa como... Enfim, já não se lembra.

Que palavras usar para dizer o passado? Não é fácil estar aqui sem história, pensou o grande poeta e misteriosamente sentiu, ou melhor, teve a certeza absoluta de que o espaço entre cada palavra que escrevia era de dias e ficou aterrado com isso e levou as mãos à cabeça e falou consigo dizendo assim: Meu Deus, onde está a paz? Onde está a verdade? Onde está o mundo que criaste? Onde estão todas as coisas elementares? Onde está o sossego do sétimo dia? Onde estás tu?

Olhou para a faca de desossar em cima da secretária e ficou perplexo com a sua presença ali. Trouxera-a da cozinha, distraído, para abrir a correspondência. Ele gostaria que fossem cartas de admiradores, mas eram as contas do mês – água, luz, gás.

– Porquê

O grito assumiu a forma do seu nome.

O grande poeta estremeceu.

– O que é? – Disse ele.

– O jantar está pronto. – Disse a mulher.

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