Olho para as adolescentes de hoje que usam óculos e, com felicidade, vejo que deixaram de ser um objeto que coloca um círculo de diferença em volta de quem os usa. Os óculos passaram a ser coisa normal, um apetrecho integrado e já ninguém aponta o dedo às miúdas que usam óculos. Até há as miúdas giras que usam óculos, e os óculos giros que estão na moda.
O tempo que vivi, eu que usei óculos desde os quatro anos, foi bem diferente. Ser a miúda que usava óculos não era fácil. Começava logo por casa com os irmãos a assinalarem a diferença com a maldade aguçada que habita a infância. Era a “caixa de óculos” e ficava assim marcada como alguém que precisava de um objeto para ver claramente o mundo, quando os outros prescindiam dessa mediação feita de lentes grossas e aros de massa. Um artefacto que se colocava em cima do nariz e era suportado pelas orelhas, e que precisava ora de afinação para não fazer doer a cabeça, quando estavam apertados em demasia, ou então, se estavam demasiado largos, escorregavam com uma autonomia desconcertante para a ponta do nariz em equilíbrio precário.
Não ajudava a circunstância de não existirem, na altura, óculos giros, ou talvez existissem, mas essa não era uma prioridade na economia familiar. A miúda precisava de óculos para ver e não para ficar gira, que deveria ser para aí a última coisa em que a minha mãe pensava quando aviava a receita do Dr. Natividade na Casa dos Óculos. Entre as botas ortopédicas dos meus irmãos e os meus óculos, a coisa que menos pesava a consciência materna e paterna era a estética. O importante era chegarmos à idade adulta sem as pernas tortas e sem a vista tão curta que nos impedisse de ver, ler ou trabalhar.
A adolescência com óculos foi, por isso, um martírio que carreguei com a coragem possível, a vergonha incontornável, e aquele desejo inconfessado de ser transparente e de sair daquela fase o mais depressa possível.
Não saí, ainda hoje uso óculos, e vou usá-los para sempre. Mas já não carrego o drama que foram os óculos da adolescência. Atravessar os primeiros amores e perceber que nunca os rapazes iam escolher a miúda de óculos, mesmo que os amasse com toda a força das minhas dioptrias e os visse claramente vistos, apesar da falta de vista.
Esta travessia deixou, contudo, marcas e, ainda hoje, apesar de precisar de óculos em permanência, só os uso quando absolutamente necessário, ou seja, para ler, trabalhar e conduzir.
No resto do tempo, ando a franzir os olhos para ler coisas ao telemóvel, que fica literalmente colado ao nariz. Vejo vultos e não coisas concretas, mesmo as letras grandes já me falham. A pergunta que mais oiço é: porque é que não usas os óculos. Mas é uma pergunta que parte sempre daqueles que não sabem, nem nunca vão saber, o que foi ser a miúda dos óculos num tempo em que estes não eram giros, não eram moda. Eram apenas um apetrecho mal-amanhado, que ficou gravado em todas as fotografias da escola e do BI, e até nas fotos da Primeira Comunhão, sem honra, nem glória, e a assinalar, de forma indelével, que nunca fui uma princesa dos contos de fadas, a criança bonita a quem se tece elogios, ou o a adolescente a que vaticinam uma beleza que não está lá, mas vai surgir um dia. Os óculos permitem-nos ver melhor, mas desfocam, por completo, a imagem que os outros têm de nós.