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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

10/02/2023 08:00

A mulher grávida surgiu diante da varanda sem mais nem menos. Irrompeu do meio da vegetação húmida e exuberante, embrulhada numa capulana parda, como se fosse um animal selvagem, e atravessou com passos lentos o quintal de terra barrenta, escurecida pela chuva de muitos dias seguidos. Escolheu aquele caminho com o objetivo de ver o homem branco que estava sentado na cadeira de bambu e atiçar a rapariga negra que o acompanhava em silêncio, apoiada numa das colunas do alpendre.

Falou na língua nativa, sem parar ou sequer abrandar a passada, e ouviu as respostas prontas, também em dialeto, dadas pela rapariga, cujo rosto adquiriu subitamente a mesma feição do fim do dia, com o verde das árvores a enegrecer pouco a pouco e a chuva a descer outra vez das montanhas entre relâmpagos e rumor de trovões distantes.

A grávida deitou um olhar altivo e venenoso ao homem branco e, antes de desaparecer na esquina da casa, disse em português:

- Boa tarde.

Ao que ele respondeu:

- Boa tarde.

O espaço em redor da varanda esvaziou-se e sobreveio novamente o silêncio, até que a rapariga decidiu falar:

- Aquela ali me provocou.

O homem era estrangeiro e desconhecia a língua local, por isso perguntou:

- O que foi que ela disse?

A rapariga baixou a cabeça, como se estivesse à procura das melhorares palavras para fazer a tradução, ao passo que ele ficou a contemplá-la. A sua figura não era esbelta. Existiam desproporções atrozes, linhas toscas e grosseiras, desequilíbrios e deselegâncias impiedosas, mas o rosto, o rosto carregado de negritude, de uma profunda e intensa negritude, operava o estranho milagre de iluminar todas as partes do corpo e a beleza era então possível, atingindo, por vezes, cumes que ele considerava extravagantes.

- O que foi que ela disse? - Perguntou outra vez.

Ela permaneceu em silêncio e ele, não a querendo perturbar mais, virou-se para dentro si. Percorreu com o olhar as suas próprias pernas, que estavam esticadas contra a parede da varanda, e perdeu-se no musgo que cobria os tijolos.

Sentia uma vaga dor nas articulações dos pés.

O ar estava demasiado quente, abafado, quase angustiante.

E, de repente, achou-se sozinho na floresta mágica da sua alma, como se tivesse entrado num sonho através da parede da varanda. Ouvia vozes longínquas, entrecortadas pelo vento da distância. Porém, não as distinguia. Talvez fosse a mãe que o chamava para ir almoçar, ou a irmã entusiasmada com a descoberta de um inseto raro na fazenda, ou um amigo que denunciava a sua posição no jogo das escondidas… Fosse quem fosse, falava lá do fundo, muito fundo, no tempo em que partir era apenas um devaneio, não uma necessidade.

Por fim, a rapariga falou:

- Sabe o que ela disse, sabe?

O homem ficou atento.

- Ela disse que você era um boneco na varanda.

Isto, por sinal, magoou-a profundamente.

- Então o homem é um boneco?! - Disse ela irritada.

A outra reagiu logo, com malícia e peçonha:

- É, sim! É um boneco branco e feio!

A rapariga não se conteve:

- Pode ser um boneco, mas tem dono, é meu. Agora, de quem é esse inchaço que você tem aí na barriga? Isso não tem dono! Isso é do marido de outra!

Foi neste momento que a grávida deitou um olhar venenoso e altivo ao homem branco que estava sentado na cadeira de bambu e disse "boa tarde". A seguir desapareceu na esquina da casa, sem mais nem menos, tal como antes tinha surgido do meio da vegetação húmida e exuberante, embrulhada numa capulana parda, como se fosse um animal selvagem, caminhando com passos lentos sobre a terra barrenta do quintal, escurecida pela chuva de muitos dias seguidos.

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