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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

23/12/2022 08:00

Gosto de histórias e amo o silêncio, porém estou aqui sentado diante do computador há tanto tempo e nada. Nada de nada. Volta e meia, um fio de luz atravessa inesperadamente o sítio onde me encontro e eu corro atrás dele, luto contra sombras e mistérios para o alcançar, porque - tenho a certeza - ele contem o segredo da vida, a essência do bem e do mal, mas de repente percebo que, afinal, estou apenas a olhar para o buraco da fechadura da porta do quarto.

Volto à estaca zero.

Escrever é isto.

Agora corro atrás do silêncio e vou até ao fim do mundo, porque o silêncio - tenho a certeza - transporta a explicação da luz e eu preciso dela para contar histórias. Revisito todos os lugares onde estive em todas as épocas da minha vida. Vou com urgência da ilha natal aos antípodas do meu ser, esse lugar encantado onde ando de cabeça para baixo e falo de trás para diante, a dizer coisas espantosas como: Antes de morrer vou desenhar um coração numa árvore sagrada e dentro do coração vou escrever Duarte ama Patrícia, mas ao contrário, assim: Etraud ama Aicírtap. Ou simplesmente D+P às avessas, como letras doutro alfabeto.

O que vale é o amor e a sua eternidade, sem dúvida, embora logo de seguida dê por mim de boca aberta a olhar para um parafuso mal aparafusado na estante, como se o parafuso tivesse algo a ver com o eixo das palavras que giram dentro de mim sem nunca chegar ao fim e, então, tudo se desfaz no vazio da página em branco.

Volto à estaca zero.

Escrever é isto, meus amigos.

Às vezes procuro a salvação no absurdo e escrevo textos como este:

Conheço um gajo que está habituado a lidar com situações estranhas e por isso acha tudo normal. Lá em casa, as pessoas confundem óculos com guarda-chuvas e no jardim existe um arbusto que produz telefones de várias cores. Quando os telefones começam a tocar é porque estão maduros e podem ser colhidos. No jardim também há uma gaiola dourada de pernas para o ar que alberga uma grande criação de caixas de fósforos voadoras, mais de cinquenta, talvez cem, que é a paixão da tia mais velha, uma senhora de cabelo branco chamada Maria Arlete, o único elemento da família que aceita o mundo como ele é - simples e louco.

Outras vezes coloco o foco em conversas que oiço por acaso, como esta entre dois rapazes num bar, aqui há dias:

- Tenho 24 anos e posso dizer que sou mais maduro do que tu, que só tens 19.

O miúdo falava com arrogância e o outro escutava-o com tristeza.

- A vida - continuou - é feita de sucessões. Quanto mais velho, mais maduro.

De repente, o mais novo reagiu e com firmeza:

- Como podes tu ser mais maduro do que eu se a tua ideologia, as tuas pretensões e os teus sentimentos são banais?!

E rematou:

- És parvo!

Ou então vou buscar cenas à minha vida pessoal e disseco-as diante de vós, palavra por palavra, sem medo do bisturi, sem medo do sangue, para que conheçam o jeito como encaro a verdade e tudo o que ocorre debaixo do arco da realidade que me ampara, sobretudo a parte que o eu-presente mais abomina, mas da qual mais saudades tem - o eu-passado, seja aqui, no poio onde vivo, ou mais além, onde mora o meu sonho, onde se esconde a minha fantasia, às vezes em tom de autobiografia, outras vezes em modo de autoficção, porque alguns acontecimentos exigem narração em sussurro e sigilo, para que ninguém saiba ao certo como foram.

Digo-vos: Tudo está carregado de luz e vida e em tudo opera o mecanismo da criação, incluindo no parafuso mal aparafusado na estante, no buraco sombrio da fechadura da porta e agora também nos dois clips entrelaçados em cima da mesa para os quais estou a olhar há tanto tempo sem ter escrito ainda uma única palavra.

Escrever é isto, meus amigos.

Escrever é voltar constantemente à estaca zero.

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