MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

6/03/2022 08:08

Era uma noite de verão quente, mas naqueles dias a preocupação não eram os fogos. Os adultos andavam com ar apreensivo e desgostoso há dias. Falavam, entre dentes, do preço do petróleo, que ia fazer subir tudo, de terras distantes das quais nunca tínhamos ouvido falar e temiam o futuro e a fome. "Ai meu Deus, vai ser como naquele tempo, vamos ter dinheiro e não ter que comer". Uns aconselhavam os outros a encher a arca e despensa. "Eu já fui às compras à cidade", gabavam-se. "Isto é uma terceira guerra mundial que vem aí", vaticinavam outros.

Entre os garotos, ninguém sabia bem nem o que que era guerra, nem o que era mundial, que o mundo acabava nas Desertas. A única que se conhecia era quando alguém se lembrava de fazer batalhas de bolinhas de papel, amassadas com saliva e sopradas por uma caneta esvaziada do seu interior e das suas funções, e que era sempre interrompida quando um ia protestar à mãe em lágrimas. "Queixinhas". Ia tudo de castigo, que as canetas da Bic eram para escrever e não andar naqueles preparos. Guerra acabada, saíamos todos vencidos. E amuados, claro.

O ar quente daquelas noites, que nos levavam para fora de casa até tarde, pesava mais que o preto envergado ano após ano, estação após estação, pelas viúvas da aldeia. Kuuuuu-wait, repetiam os rapazes, entre risinhos. Era engraçada aquela palavra ouvida vezes sem conta na televisão pelos jornalistas de guerra, com coletes cheios de bolsos, os nossos heróis na altura. Ficámos a saber que havia invasores e invadidos, bons e maus e arrumámos assim as ideias.

Naquela noite específica de verão, em que a guerra começara, os adultos estavam particularmente arreliados e juntaram-se na casa de um vizinho a debater a situação geoestratégica a partir da nossa ilha a meio do Atlântico, como se da nossa aldeia pudéssemos endireitar o mundo. Quando perguntávamos o que é que se passava e se podiam cair bombas também no nosso quintal, mandavam-nos brincar. Que eram conversas de gente grande. A dada altura cedemos e fomos fazer coisas de gente pequena. Uma brincadeira leva a outra e no meio de um entusiasmante jogo de escondidas, de grandes contra pequenos, uma porta fechada fez a primeira baixa. Ouve-se um grito e percebe-se que era caso sério. A minha irmã mais nova com um dos dedos pendurado por uma pele e a mãe à beira de um ataque de nervos com o sangue que não estancava. Chorávamos as três. A pequena, já mais pelo susto do que pela dor, eu por culpa, afinal fechara a porta, e a mãe porque era mãe e não podia ver nenhuma de nós em sofrimento. O pai levou a primeira ferida de guerra para a urgência. A petiz voltou com o dedo enrolado num penso tal que o batizámos de boneca. Nessa noite esquecemo-nos todos do que se passava longe da vista e do coração, na aflição de a pequena poder ter perdido parte do dedo para sempre. Esse foi o assunto das conversas dos dias seguintes. Sarou bem a ferida, mas deixou uma cicatriz para a vida. E foi assim que percebemos o que era a guerra.

Quando perguntávamos o que é que se passava e se podiam cair bombas também no nosso quintal, mandavam-nos brincar. Que eram conversas de gente grande.

Sandra Cardoso escreve

ao domingo, de 2 em 2 semanas

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