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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

20/08/2021 08:00

Quando o senhor João tinha 45 anos, conheceu Sofia, de 35. Aconteceu num jantar de amigos e foi mesmo uma sorte, porque, nesse dia, o senhor João mudou três vezes de ideias antes de comparecer no restaurante. Vou - não vou - vou. E lá foi. Ela era amiga dum amigo, daqueles que se vê uma vez por ano. Tinha o cabelo curto, coisa que ele não apreciava nas mulheres, mas era bonita, lá isso era, não muito alta, porém elegante, boa perna, boa anca, mamas ainda firmes, talvez por serem pequenas - pensou - e sobretudo era inteligente, determinada, confiante, mas também fria e autoritária.

Aquilo foi de repente: o senhor João apaixonou-se perdidamente por ela e ela por ele, o que constituiu uma grande surpresa para si, pois à primeira vista tinha-a considerado inalcançável, tão fina e distante, roupa cara, discreta, uma mulher difícil, impossível, de gesto vago e olhar altivo.

Naquela altura, o senhor João vivia com a mãe e estava convencido que ia morrer solteiro, triste e amargurado, como tantas pessoas por aí. Era filho único. A mãe tinha 80 anos e era viúva há vinte. O senhor João tratava-a por tu desde pequenino e nunca dizia mãe, mas o seu nome próprio, como se fosse uma irmã mais velha. A casa ficava na periferia e tinha perdido o encanto ao correr dos anos, sobretudo após a morte do pai. Já não era um lugar mágico, mas ainda continha memórias fabulosas incrustadas nas pedras, nas telhas, nos móveis, no abacateiro do jardim, na luz dos recantos e estas memórias avivavam-se sempre que o senhor João se sentia feliz, como no dia em que Sofia lhe disse sim, uma semana depois de se terem conhecido.

Na verdade, ela não disse sim. A bem dizer, nem falou. O que aconteceu foi que quando o senhor João, desfazendo-se da timidez, lhe deu um beijo na boca, Sofia não o repeliu. Antes pelo contrário. Ficou três segundos a olhar para ele embasbacada - lábios húmidos, sensuais, expectantes - e depois agarrou-o com uma força descomunal, selvagem, brutal, como se o quisesse despedaçar ou comer vivo ali mesmo dentro do carro. O senhor João ficou atordoado e viu - em flash cerebral - um leão a correr atrás duma gazela, sendo que, neste caso, ele era a gazela e ela o leão.

Quando chegou a casa, o senhor João estava a transbordar de felicidade. Não se conteve e deu pulos de alegria no quintal, como fazia em menino para celebrar as vitórias. Depois, ficou pasmado a olhar para o abacateiro. Era uma árvore gigante - a copa cobria a casa por inteiro - e ele lembrou-se que gostava muito de a trepar quando era criança e até ouviu uma voz a dizer:

- Vem a mim matar saudades.

O senhor João deu um salto e ficou pendurado num dos galhos mais baixos, a balançar para cá e para lá. Depois, deitou a mão ao galho de cima e a seguir ao outro e assim sucessivamente até que se achou bem longe do chão. Agradou-lhe imenso ver o mundo lá do alto e só pensava em Sofia, na carne e na alma de Sofia, Sofia que era bela e culta, Sofia que o queria devorar, Sofia que era poesia, Sofia sabedoria, Sofia tudo.

O júbilo fê-lo explodir:

- SOFIA!

E o nome ecoou nos arredores.

Cinco minutos depois, porém, passou-lhe o entusiasmo e ele decidiu regressar à terra. Foi então que deu conta da altura a que se encontrava e, pior, percebeu que já não era um jovem destemido, mas sim um senhor de 45 anos, muito rotineiro e cheio de pavores, ainda por cima com vários músculos flácidos e uma barriguinha despropositada, que lhe impunha um subtil - mas terrível - sentimento de insegurança. O abismo do fim do mundo abriu-se dentro de si e ele foi tomado por uma vertigem diabólica, pelo que se agarrou aos ramos do abacateiro com o vigor de Cristo pregado na cruz.

E gritou desesperado por salvação:

- SOFIA!

Era o nome da mãe.

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