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Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

21/03/2021 08:00

Dançava com o desejado bebé ao colo, que chegou três anos depois do casamento. Três anos era muito tempo e já andaram meses a driblar as perguntas incómodas e inconvenientes de família, amigos e conhecidos.

- De que é que estão à espera?

- Há coisas que é preciso fazer com jeito, brincava, sem deixar de se aterrorizar com a ideia de haver uma avaria irreparável.

Era um tempo em que não se imaginava alguém casar para não ter filhos. Não era opção, a menos que houvesse um problema, que era quase sempre dela. E, claro, que também tivera as suas dúvidas e angústias: E se não pudessem mesmo? E se Deus não os abençoasse com frutos e o ventre da que tomou como sua, na saúde e na doença, fosse árido como o deserto? Pior, e se fosse ele, que não tivesse semente capaz de fazer germinar?

E por isso dançava, com aquele ser pequenino com um mês de vida e rodopiava de alegria. O batizado aconteceu cedo, como também era habitual naquele tempo, não fosse o anjo morrer e ficar obrigado ao purgatório. Tinham razões acrescidas para ter medo. O parto não foi fácil. Raramente eram naquela altura, em que tudo era a sangue frio, sem analgésicos e anestesia. Foi a ferros, literalmente, deixando a mãe em pranto, não só pela dor física, mas por ter sido a única naquela enfermaria privada do seu bebé, que teve de ir para a incubadora. Chorava a fio dia e noite, pensando que nem tinha sido capaz de fazer aquilo para que as mulheres deveriam estar preparadas. Estava convencida de que o bebé não ia sobreviver com aquelas marcas todas na cabeça, que foi o que guardou daquele momento que tinha idealizado de outra maneira.

Ainda não sabia que a maternidade vinha com sentimento de culpa para a vida toda. E de nada lhe valia a garantia das enfermeiras de que a menina estava bem e que era muito linda. Não havia o que lhe estancasse as lágrimas, que lhe corriam pela cara abaixo quando via as colegas de puerpério com as suas crias ao colo ou a amamentar. E ela com o corpo dilacerado e a alma num farrapo, mãe de um berço vazio.

Aquela semana foi ainda mais longa do que os três anos de perguntas difíceis e inconvenientes de família, amigos e vizinhos que lhe antecederam. Até que chegaram ali, àquele momento, um mês depois, imortalizado naquele retrato do batizado, onde dançava e rodopiava de felicidade, que parecia eterna. Mas não foi, como nada é. Continua a folhear o álbum, para ver se percebe o momento em que deixou de ser feliz a dançar. Deve ter sido o mesmo dia em que a nuvem negra o passou a ensombrar para sempre, tornando-o num condenado aprisionado em si, que já nem sabe dançar.

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