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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

18/07/2025 08:00

Ele sabe que os dias que compõem a sua vida são todos iguais e se limitam a uma só rua da cidade, por assim dizer, de modo que a história é sempre a mesma, independentemente do que acontece no resto do mundo, sejam vulcões em erupção, guerras e matanças, crises humanitárias ou apenas nada.

Hoje é mais um dia repetido, mas talvez seja um bom dia para iniciar a narrativa da sua existência, precisamente agora, em que ele está sentado no gabinete e ouve o chefe na sala contígua a gritar que a classe política não vale nada, nomeadamente os elementos do governo e dos partidos que suportam o governo. Não valem nada, diz o chefe com convicção, como se o gajo não fosse também um deles, se calhar o pior de todos.

Santa hipocrisia, pensa o homem sem história e fica feliz por ter chegado a hora de sair e então vai para casa e encontra a sua mulher, uma mulher normal com quem vai para a cama todos os dias e ele pensa sou eu que vou para a cama com ela todos os dias e pensa isto entre uma espécie de felicidade e uma profunda apatia, mesmo quando não vai para a cama com ela, sou eu quem acaricia o seu corpo, pensa ele, mesmo quando não lhe acaricia o corpo, e é a mim que ela se entrega toda, dizendo:

– Não pares, não pares.

E di-lo cegamente, como se fosse mesmo verdade, mas também é ela quem o empurra e priva de realizar tantas fantasias, às vezes de um modo tão frio que ele fica até com vergonha de se despir e lhe mostrar o pobre corpo, perdido num deserto de solidão, quando, de repente, a mulher contra-ataca:

– Faz-me um filho.

É sempre assim.

Parece um desejo puro e ele reage:

– Não passa de hoje.

– Dizes sempre isso, mas nunca és capaz – diz ela, com maldade.

É sempre assim.

E então fazem amor, como se fazer amor fosse também mais um dia que passa na vida, um dia igual aos outros, com o mesmo princípio, o mesmo meio, o mesmo fim, ela com metade do corpo em cima da cama, ele com os pés no chão, as pernas dela nos seus ombros, ele a segredar-lhe ao ouvido:

– Estou quase, estou quase.

E ela:

– Não pares, não pares.

De facto, os dias que compõem a sua vida são todos iguais, de modo que a história é sempre a mesma, independentemente do que acontece à roda do planeta, sejam guerras e matanças, crises humanitárias e nada, vulcões em erupção e a sua própria ejaculação, circunstância que o faz valorizar sobremaneira a separação entre o seu sofrimento e o sofrimento do resto do mundo.

Há uma diferença abismal entre um e outro. Ora vejamos: O seu sofrimento é único, pessoal e intransmissível, ao passo que o sofrimento do resto do mundo alberga apenas a dor dos outros, entre os quais a sua mulher e o seu chefe, nomeadamente quando ela diz não pares e ele grita que a classe política não vale nada.

Em tempos, o homem sem história pensou que seria bom escrever tudo o que se passa na sua cabeça e no seu coração para melhor compreender o padecimento dos outros, mas depressa percebeu que escrever é como uma história de amor impossível. Definha quem o faz. Se for anjo, corta-lhe as asas e impede-o de voar e proteger os desamparados. Se for demónio, serra-lhe os cornos e limita-lhe a capacidade de exercer o mal. Se for homem, simplesmente entristece-o sem piedade. Então, desistiu da tarefa.

De modo que os dias que compõem a sua vida são todos iguais e circunscrevem-se a uma só rua da cidade, por assim dizer, sendo que todos os dias ele ouve o chefe maldizer o governo do qual faz parte e todos os dias vai para casa convencido de que irá para a cama com a mulher e ela lhe dirá não pares, não pares...

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