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Artigo de Opinião

30/01/2022 08:00

Vem isto a propósito da recente morte de René Robert, um fotógrafo suíço de 85 anos que sucumbiu, vítima de hipotermia, após ter estado caído durante 9 horas numa movimentada rua de Paris, sem que ninguém indagasse pelo seu estado de saúde, sem que ninguém parasse um segundo para, no mínimo, ponderar se aquele idoso prostrado no passeio estaria vivo ou morto, adormecido, ébrio ou a precisar de ajuda… Aparentemente, René terá escorregado e caído durante o seu habitual passeio nocturno pelas redondezas da sua habitação. Terá perdido os sentidos e, impossibilitado de pedir ajuda, foi ignorado por milhares de transeuntes. Acabou por ser um sem-abrigo a dar o alerta. Demasiado tarde para resgatar uma vida que já se tinha esvaído. "Morto pela indiferença", escreveu no Twitter um seu amigo, o jornalista Michel Mompontet, que acrescentou: "Se esta morte terrível pudesse servir algum objectivo, seria este: quando um ser humano está deitado num passeio, devemos verificar como ele está - por muito apressados que estejamos. Vamos só parar por um segundo." O dedo na ferida veio depois: "Antes de dar lições ou acusar alguém, tenho de lidar com uma pequena dúvida que me deixa desconfortável - tenho 100% de certeza que eu teria parado se fosse confrontado com esse cenário - um homem caído no chão? Nunca virei a cara a um sem-abrigo deitado a um canto?"

René Robert era um fotógrafo conhecido, daí a projecção mediática do seu trágico falecimento. Não merecem o mesmo tratamento jornalístico as 600 pessoas sem-abrigo que morrem por ano nas ruas de França. Desconheço os números de Portugal e da Madeira, nem é por aí que pretendo desenvolver esta reflexão.

As minhas perguntas são estas: Se fosse cá, como seria? Eu e cada um de vós que me está a ler neste momento, como teríamos reagido? Quem iria parar, desviar o olhar do vazio para focá-lo naquele corpo tombado? Quem iria interromper a sua marcha apressada, ocupar uns breves instantes do seu tempo tão preenchido, dedicar-lhe um pensamento no meio do turbilhão avassalador das preocupações quotidianas que nos consomem (ou que deixamos que nos consumam)? Como se perguntava num programa de televisão da SIC: "E se fosse consigo?"

Dou por mim a concluir, consternado, que René Robert também não teria sobrevivido nas ruas do Funchal. Dificilmente seria vitimado pelo frio, mas provavelmente sucumbiria à indiferença. Custa a aceitar, mas a verdade é que já nem sequer olhamos para os mendigos andrajosos, os toxicodependentes alucinados e os alcoólatras adormecidos pelos cantos. Fazem parte da paisagem do espaço citadino, são obstáculos de percurso que se devem contornar ou evitar, leves contratempos e breves incómodos quando nos abordam ou se aproximam demasiado… Foi nisto que nos tornámos… Quando é que os nossos valores mudaram? Quando é que anestesiámos os nossos princípios? Como é que permitimos que a indiferença se instalasse e incrustasse? Somos estrangeiros em relação à humanidade?

Não tenho respostas nem soluções, apenas partilho as minhas inquietações e espero que despertem reflexão. Que sejam um impulso à luta diária de cada um contra a indiferença, um apelo ao combate contra a injustiça e a iniquidade, uma ténue luz de esperança de que a vida não tem de ser vazia, nem absurda, nem inútil, nem solitária… e que depende de cada um de nós estender a mão a quem está caído e ajudá-lo a levantar-se do chão.

(Votar também é lutar contra a indiferença. Hoje não é dia de virar a cara para o lado).

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