MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

Economista

16/05/2025 08:00

A cada ciclo eleitoral, repete-se um ritual silencioso: a suspensão da campanha, o recolhimento dos candidatos, o recolher obrigatório da propaganda. Chama-se a isso “dia de reflexão”. Está consagrado no n.º 1 do artigo 141.º da Lei Eleitoral da Assembleia da República (LEAR) e impõe uma pausa à agitação do debate político na véspera das eleições. À primeira vista, parece um gesto civilizado, um espaço para ponderar. Mas será que é, de facto, compatível com os valores fundamentais do nosso Estado de Direito democrático?

Do ponto de vista constitucional, o “dia de reflexão” levanta sérias dúvidas quanto à sua compatibilidade com os artigos 37.º e 38.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), que garantem, respectivamente, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. A proibição da propaganda eleitoral e da discussão pública de temas políticos durante este período não deixa de representar uma restrição a direitos fundamentais. Ora, qualquer restrição a esses direitos exige um escrutínio apertado à luz do princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18.º, n.º 2 da CRP.

Esse princípio obriga a que as limitações a direitos fundamentais sejam adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito. A medida deve, em primeiro lugar, ser apta a atingir o fim que persegue, neste caso, assegurar um momento de serenidade para o eleitor decidir. Em segundo lugar, deve ser necessária, o que significa que não pode haver alternativa menos gravosa. Finalmente, o benefício que se pretende alcançar deve superar os prejuízos causados pela restrição. E é precisamente neste ponto que o “dia de reflexão” falha. Ora num contexto mediático e digital completamente distinto daquele em que esta norma foi concebida, é ilusório pensar que se pode impedir a circulação de informação política durante 24 horas. As redes sociais, os grupos de mensagens instantâneas, os fóruns online e até os canais informativos internacionais tornam a proibição não apenas ineficaz, mas obsoleta. Pior: ao pretender calar todos por causa de alguns, o Estado acaba por interferir desnecessariamente com o direito à palavra, incluindo a palavra de jornalistas, de analistas políticos e de cidadãos sem qualquer vínculo partidário.

A fragilidade normativa torna-se ainda mais evidente, e escandalosa, quando se observa que o “dia de reflexão” não se aplica ao voto antecipado em mobilidade, onde dezenas de milhares de cidadãos já exercem o seu direito de voto até sete dias antes da eleição oficial, sem qualquer imposição de silêncio ou contenção mediática durante esse período. Esta omissão legislativa mina por completo o argumento de serenidade que justifica o “dia de reflexão” e expõe uma profunda incoerência no sistema eleitoral português. Se a liberdade de expressão e o debate político são admissíveis, e de facto protegidos, durante o exercício do voto antecipado, por que razão são limitados precisamente no momento mais próximo da tomada de decisão da maioria dos eleitores? Esta dualidade é insustentável à luz do princípio da igualdade e agrava a arbitrariedade de uma norma já anacrónica.

Mais, o Tribunal Constitucional português reconheceu esta tensão do “dia de reflexão” no Acórdão n.º 450/2022, sublinhando que as limitações à propaganda eleitoral não podem ignorar o núcleo essencial das liberdades de expressão e de imprensa. Esta proteção constitucional encontra reforço na ordem internacional, em particular no artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos é clara: qualquer limitação à liberdade de expressão deve ser não só legal, mas também necessária numa sociedade democrática. E a pergunta impõe-se: será mesmo necessário, hoje, restringir o debate público no dia que antecede uma eleição? Ou será esta uma medida desproporcionada, desajustada à realidade tecnológica e incapaz de atingir o seu propósito?

A resposta não está na letra da lei, mas na sua leitura à luz da Constituição e da experiência contemporânea. Um “dia de reflexão” que impede o escrutínio público, que silencia vozes independentes e que pretende impor um silêncio artificial sobre um país digitalmente conectado não promove a deliberação democrática, antes a inibe.

Por tudo isto, importa reavaliar da necessidade do “dia de reflexão”. Não se trata de pôr em causa a serenidade do processo eleitoral, mas de reconhecer que os instrumentos usados para a garantir devem ser compatíveis com o nosso tempo, com a nossa Constituição e com os direitos fundamentais que nela se consagram.

A democracia não se protege silenciando, protege-se garantindo liberdade informada.

OPINIÃO EM DESTAQUE

88.8 RJM Rádio Jornal da Madeira RÁDIO 88.8 RJM MADEIRA

Ligue-se às Redes RJM 88.8FM

Emissão Online

Em direto

Ouvir Agora
INQUÉRITO / SONDAGEM

Qual é a expetativa que tem para o Orçamento Regional para 2025?

Enviar Resultados

Mais Lidas

Últimas