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Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

15/10/2023 08:00

Os pés de molho eram tratamento e higiene do corpo e da alma, depois de um dia de trabalho no campo. Era um ritual de fim de dia, que expiava os males e a sujidade da terra, que se impunha dura de roer, depois de verões secos e prolongados, que não agoiravam boas notícias para a agricultura. "Se não chove não sei como é que há-de ser", lamentava-se o patriarca, de pés de molho e de alma em desalinho e preocupação.

A canalha despreocupada percebia pouco do que se passava. As semilhas na terra sem se desenvolverem, a rama que precisava de ser passada e a água que era um pingo na levada ou a doença que tinha dado nas favas. As pragas e as maldições. Parecia valer de pouco não irem à terra ao domingo. De respeitarem a Sexta-Feira Santa e os feriados do Senhor. De fazerem a sua parte.

Às vezes, o Deus em que acreditavam, por quem se levantavam todos os domingos de manhã e por quem vestiam a sua melhor roupa da missa, parecia fazer orelhas moucas às preces. Era como se não visse o trabalho de sol a sol, como se ignorasse o esforço e a tristeza, que inundava a banheira que lavava pés e pernas, deixando a água encardida e um cheirinho a sabão azul e branco, que era um misto de derrota e esperança no amanhã que viria.

"Nunca vi tempos como estes", assegurava a mãe, enquanto fazia as contas à carne na salga e que já só ia servindo para temperar e dar gosto à sopa de pelo menos quatro de sete refeições na semana. Não havia fome, mas não havia fartura ou luxos. E os fiados na venda, das compras de todos os dias, que se queriam saldar até ao fim do ano.

A chuva que não caiu e sem ela o infortúnio que se abatia sobre a terra e sobre as vidas. Até que, por fim, jorrava dos céus, às vezes assustando com as enxurradas e com violência da sua queda. E lavava as almas pessimistas enquanto verdejava as culturas na terra. O pai suspirava de alívio e brindava com o vinho novo, a mãe poupava menos na carne na salga enquanto pensava na fartura que viria do porco que iriam matar na Festa. "Que nosso Senhor o conserve e que não venha muito gordo", pedia. E a esperança florescia como as favas, as semilhas e as batatas nos socalcos da sobrevivência daqueles dias de sorte e de chuvas boas.

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