MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

5/02/2021 08:09

Um dia eu sonhei que era um fotógrafo famoso e saí à rua com o equipamento de fotografia às costas e a rua era uma rua de sonho - enevoada, imprecisa, vazia - numa cidade que era esta e as outras também. Fui ao Largo do Município, à Praça da Restauração, ao Cais da Cidade. Todos os lugares apresentavam o mesmo ar de deserto e eu estava com medo da solidão, mas era um medo que não queria ser medo, nascia para morrer.

Ao cabo de muitas voltas, tantas quantas são possíveis num sonho, parei na Placa Central e abri o tripé defronte da catedral e da Rua do Aljube, onde ainda brilhavam os carris do carro americano. Ajeitei a câmara e cobri a cabeça com o pano preto, como faziam os fotógrafos antigamente. Na mão direita segurava o disparador, que de repente não era um disparador do século XIX, como seria de prever, mas sim um disparador do fim do século XXI, do ano 2099, um disparador para captar o futuro.

Pensei: Vou parar o tempo.

E disparei.

Nesse exato momento, vi um certo movimento na rua através da lente, ou seja, apareceram umas quantas pessoas vindas do nada. Ergui a cabeça, perplexo, mas a cidade permanecia deserta. Não havia ali ninguém. Apenas nevoeiro, imprecisão e vazio. Um abismo horizontal riscado no fundo da alma. Nada.

Regressei ao estúdio na Rua da Carreira e quando transpus a imagem para papel, seguindo um procedimento arcaico há muito caído em desuso, fiquei pasmado. Quatro pessoas tinham entrado na fotografia. No primeiro plano, aparecia um indivíduo com um jornal aberto nas mãos e o jornal cobria-lhe o rosto e o peito. No segundo plano, estavam dois militares com espingardas Mauser a tiracolo: um olhava para a câmara, como que a sorrir; o outro olhava para o fundo, onde aparecia um quarto indivíduo, que atravessava a Rua do Aljube de sul para norte, aparentemente de forma a apressada, porque ficou tremido. O disparo imobilizou-o quando virou a cara para o sítio onde eu me encontrava.

Que fotografia tão estranha, pensei.

Nesta altura, eu já tinha plena consciência de que estava a sonhar e esforçava-me por não acordar, como uma pessoa que retém a urina a todo o custo enquanto o filme não termina. Contudo, as imagens tornavam-se cada vez mais imprecisas e vazias e enevoadas, sobretudo mais confusas e velozes também. Comecei a rodopiar no estúdio, cruzei salas, atravessei corredores, abri e fechei portas, armários, gavetas, caixas e caixinhas, inúmeras caixas e caixinhas onde estavam armazenadas as memórias da minha vida e as memórias eram pedras, eram ossos, eram folhas secas.

De súbito, vi-me parado no meio do nada. Tinha uma caneta na mão e pus-me a escrever na margem inferior da fotografia. Escrevi palavras perfeitas e elas formaram uma frase ainda mais perfeita, uma frase eterna, qualquer coisa como Tudo o que se persegue na vida está preso no passado; ou A consciência é tua, mas a vida é dos outros; ou Não há explicação para nada depois da morte; ou Vivemos na ignorância porque esquecemos o futuro; ou Não vale a pena falar porque o mundo é uma máquina; ou O conhecimento é a raiz da ficção; ou Eis a manhã da revolta; ou Olha vê já viste?; ou Não me lixes; ou Fiquei de ver isso; ou Adianta o tempo para trás e sê feliz; ou Uma casa com vista para o mar; ou O que vale é que te amo; ou…

O sonho não me permitiu reter uma única letra dessa frase.

Depois, apareceu-me na mão um livrinho de capa preta vindo do nada e eu coloquei lá a fotografia. Fechei o livro e devolvi-o à estante e na estante havia centenas de livros, milhares de livros, milhões de livros, uma quantidade impossível de livros, livros, livros, livros, e todos tinham o mesmo título: Do Fim Ao Infinito.

OPINIÃO EM DESTAQUE

88.8 RJM Rádio Jornal da Madeira RÁDIO 88.8 RJM MADEIRA

Ligue-se às Redes RJM 88.8FM

Emissão Online

Em direto

Ouvir Agora
INQUÉRITO / SONDAGEM

Concorda com a mudança regular da hora duas vezes por ano?

Enviar Resultados
RJM PODCASTS

Mais Lidas

Últimas