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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

12/04/2024 08:00

Então, no meio da conversa, a Pat perguntou-me o que tinha eu descoberto e aprendido durante a minha viagem de cinco anos a Moçambique, ou seja, qual foi a transformação, a epifania, partindo do pressuposto comummente aceite, ou talvez cinicamente aceite, de que viagens desta natureza, longas, profundas, realizadas em condições mais ou menos precárias, com pouco dinheiro, pouca vaidade, pouca bagagem, por terras distantes e perante outra gente, outra cultura, são sempre reveladoras de alguma coisa essencial, alguma coisa cheia de luz, alguma coisa que explica a condição humana e o sentido da vida, alguma coisa que indica a morada da paz e sinaliza o caminho para o céu, e eu fiquei assim a olhar para ela, copo de vinho tinto na mão, a pensar que, raios me partam, infelizmente não sou bom a falar, quero dizer, expresso-me mal, não sei falar explicado, gaguejo, tropeço nas palavras, perco o fio à meada, afogo-me em raciocínio lento, morro sem lógica e pela boca não digo nada de jeito, pareço um tontinho a falar, a sério, conto mal a história, para dizer a verdade nem sequer sou capaz de ler em voz alta com clareza e só mesmo com os copos é que solto a língua e ganho alguma eloquência, de modo que o que me safa é a escrita, meus amigos, a escrita é o lugar onde eu estou como peixe na água, como se vê pela dimensão deste parágrafo, louvado seja Deus, e ainda antes do primeiro golo de vinho eu disse:

– Nada.

É a resposta certa para tudo.

– Não descobri nada, não aprendi nada.

E ao dizer isto, a banda sonora daquela viagem em África começou a tocar dentro de mim:

“Quantas vezes me sinto perdido/ No meio da noite/ Com problemas e angústias/ Que só gente grande é que tem”...

A música apanhava-me sempre de surpresa e nunca era uma escolha pessoal – canções como esta e outras do género desfaziam-me o coração sem medida enquanto caminhava por vereadas de terra batida, em lugarejos de casas desconjuntadas lá no interior do país. Eu, que conheci tanta gente na contracosta, estava sempre sozinho e subitamente alguém ligava o rádio em alto volume no meio do bairro e era Roberto Carlos, o Rei, vejam bem, o Rei:

“Lady Laura, me leve pra casa/ Lady Laura, me conte uma história/ Lady Laura, me faça dormir/ Lady Laura”...

E, de repente, eu dava por mim a chorar todos os meus amores perdidos, dava por mim a morrer de saudades da infância e da família, da casa do avô, da minha mãe, do meu pai, da minha querida tia Teresa, do mar visto do Laranjal e do mundo inteiro condensado debaixo do incenseiro na Rampa, a árvore que eu mais amei na vida, dava por mim com os pés cobertos de poeira a confundir o passado com o presente e os mortos com os vivos, dava por mim a erguer o futuro sobre estacas de sonho e esperança e tudo isto, meu amor, tudo isto foi nada, foi apenas tempo que passou, como o dia de ontem, como o dia de hoje, como todos os acontecimentos que não nos matam, como todas as emoções que não nos aniquilam, como tudo o que prova que estamos vivos, em viagem constante dentro de nós, até que cada um vá acertar contas com o seu Deus.

“Tenho às vezes vontade de ser/ Novamente um menino/ E na hora do meu desespero/ Gritar por você”...

Eu disse à Pat que, para mim, por exemplo, o impacto de uma nódoa de gordura na camisa era nulo enquanto vivi em Moçambique, absolutamente indiferente fosse qual fosse a circunstância e o tamanho da nódoa, mas aqui é bem capaz de me fazer ir demitado a casa mudar de roupa, coisa que me trouxe à memória uma amiga italiana que andava sempre angustiada com o que comia porque não queria engordar e eu dizia-lhe para não se preocupar com isso, porque ali gostavam das mulheres cheiinhas, com muita carne, ao que ela respondeu:

– Aqui sim, mas em Itália não, e eu vou voltar para lá.

Ainda por cima, ela era de Milão, uma das capitais da moda...

– Nada – disse eu à Pat. – Não descobri nada, não aprendi nada.

E a banda sonora continuava a tocar no caminho de terra batida:

“Lady Laura, me leve pra casa/ Lady Laura, me abrace forte/ Lady Laura, me beije outra vez/ Lady Laura”...

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