Nos dias que correm, a falta de autenticidade, o cinismo e a hipocrisia que caracterizam a maioria das relações sociais e profissionais vem demonstrando que é comum a malta procurar indagar diante de quem está, antes de adoptar uma qualquer postura perante o interlocutor.
Mais do que as qualidades pessoais do visado, importa descortinar venenosamente as suas posses, os seus relacionamentos, as suas prerrogativas profissionais e de poder ou a sua inclinação partidária e a medida em que tudo isso poderá ser proveitoso e a atitude consequente que deve exigir.
Desta avaliação, bastas vezes conformada por estereótipos, resulta uma catalogação que desperta o interesse na aproximação ou induz a um afastamento estratégico, conduzindo normalmente ou a uma atitude amedrontada e subserviente ou a um comportamento altivo, desprezivo ou indiferente.
Quantos de nós já não presenciaram uma atitude de sobranceria que logo se desfez numa hipócrita humildade perante um qualquer título universitário ou referência profissional? Parece esquecer-se que para além do respeito e a consideração que a dignidade de qualquer estatuto social e profissional deve merecer, nenhum homem tem o direito de olhar o outro de cima, nem o outro o dever de o olhar de baixo.
Naquela atitude social mesquinha, quando se depara com uma condição que não é beliscável, não é incomum que na avaliação se procure indagar a ascendência, até remota, de forma a encontrar algum elemento que permita desvalorizar o interlocutor. Habitualmente é uma forma de compensação reles e saloia que o despeito rancoroso e a inveja procuram alcançar. Lembro-me sempre, a este propósito, daquela moça, de família supostamente muito fina, que não quis casar com o rapaz formoso e capaz porque era neto do merceeiro.
As pessoas valem por si independentemente dos seus ascendentes e a História prova que não é um passado de pobreza que faz nascer alguém necessariamente probo, compassivo e solidário, a julgar pelos exemplos execráveis do novo-riquismo que escarra nos ambientes por onde passou, algum até evitando a família ou os antigos vizinhos na rua, como, do mesmo passo, não é um passado de abundância que impede o surgimento de espíritos imbuídos de um sentido de justiça social e compaixão humana.
Não costumo discorrer sobre os ardis da partidarite, mas confesso que me prendeu a atenção, a este respeito, alguém se intitular, legitimamente, como neto de sapateiro e coincidentemente filho de industrial de calçado. Houve alturas em que se não trocava de sapatos por dá cá aquela palha, como hoje se faz, e o sapateiro, artífice de um tempo de consumo incipiente e de miséria generalizada, assumia uma função social relevantíssima, com o engenho de remendar sapatos com as famigeradas meias solas que lhes davam um aspecto renovado. Todo o trabalho dignifica o Homem e nos esquemas de um capitalismo produtivo, é tão determinante a função do sapateiro quanto a do industrial de calçado.
Do mesmo modo que a inveja, ou a mesquinhez social, procura nos ascendentes algo que permita perniciosamente diminuir o interlocutor, aquela invocação antepassada não só não foi inocente como era de todo descabida e dispensável. A alusão, mais do que a franca assunção de um passado que não envergonha e até evoluiu fartamente, ou talvez por isso, ganhou um sabor demagógico, ao apelar à identidade e à comunhão de interesses daqueles que vivem na condição económica do sapateiro, que neste país são infelizmente cada vez mais.
O que forma um estadista não é o seu passado ou contexto familiar, mas as convicções e a sua visão de futuro para um país, seja filho ou neto de quem for.
Ele há horas infelizes.