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Artigo de Opinião

Professor

18/12/2023 05:00

O velho emigrante regressou à terra onde nasceu. Passaram mais de seis décadas. Cresceu nesta vila idosa, na fralda de dois íngremes rochedos onde, pelo meio, desce uma extensa ribeira preguiçosa. Ali mesmo, junto ao mar, na infância, passava horas infinitas, adormecido em sonhos e desejos. Era aquele barulho dos calhaus que as ondas enrolavam num ritmo quase musical e que já pouco se fazia ouvir quando a meditação o afastava daquele pequeno mundo, esse calhau onde corria descalço como as gaivotas deslizavam no céu, que o convocava. À beira-mar. Sentia sensações inenarráveis.

Noutros tempos, ali perto, no velho campo da bola, media-se com os garotos da baixa. Também conhecidos por garotos do calhau. Cresciam juntos fora dos humildes lares onde habitavam em famílias numerosas. Na sua casinha de palha, vivia com a mãe, a avó, dois tios e quatro irmãs. Só ele e as outras crianças gozavam da felicidade que a inconsciência permite. Para aquele mundo, tinham tudo o que era preciso. Nesse tempo, pressentia que tinha sobretudo um universo para descobrir, valores para adquirir e obras para realizar. Havia ainda muito futuro para explorar.

Ouvia ainda a gritaria dos putos que jogavam descalços com bolas de trapos. As brigas dos donos das pequenas bolas de visgo por causa das biqueiras que amoleciam os frágeis esféricos e os amuos dos que ficavam fora da peladinha. Passavam horas de felicidade só interrompida pelos chamamentos das mães que ecoavam no vale e que cada um reconhecia.

-Uuuuuuuuuu! Regressava amuado para a casa junto ao cemitério onde a mãe fora deixada com as quatro irmãs pelo pai que tinha ido pescar para a África do Sul e nunca mais regressara. Na cidade do Cabo, para onde foi chamado mais tarde, ainda ouvia aquele grito da matriarca protetora. Como um clamor do passado que protege a vida inteira. Uma voz que conhecemos antes de nascer.

Agora regressado, ainda se recorda. Como tudo mudou! O pequeno casario, as canas-de-açúcar que ondulavam ao vento, os grupos de homens, pescadores, que se juntavam em rodas de batota, na sombra dos barcos varados no calhau.

Quando pelo caminho, ouvia a guincharia dos porcos que tinham o destino marcado para este dia do Ó. Sim, era neste dia dezoito que se cumpria essa tradição. Ouvia-se essa azáfama por todo o vale. Não era o caso das famílias de pescadores, da sua família. Esses só viviam do mar. De pouco mais.

Na sua casa não havia árvore de Natal. Na rua não havia luzes de Natal. O Pai Natal ainda não tinha nascido para as crianças desta vila, nesse tempo. Havia sim a Lapinha. O Menino Jesus, de pé, num pedestal, com uma mão levantada e um dedo a apontar para o Céu. Na escadinha abundavam searinhas e outros ornamentos da época. À volta ficavam as cabrinhas. Uma planta bravia que a mãe o obrigava a buscar nas rochas da Queimada. Era o seu contributo para a decoração da Festa. Como prémio podia comer laranjas da escadinha, mas só depois da Festa.

E, como todas as crianças da vila idosa, nesse tempo, só tinha um desejo. Que o menino Jesus, porque ainda não conhecia o Pai Natal, não se esquecesse de lhe trazer um presente na grande noite de magia. O único presente que recebia. Nem que fosse um carrinho de plástico, como em todos os natais de que se lembrava.

Agora, em impressões dessa época que só existe em memórias antigas, naquilo que lhe parece um lapso temporário, tudo mudou na vida da sua terra, onde ainda desce a ribeira, cada vez mais preguiçosa, na fralda dos mesmos íngremes rochedos.

Emanuel Gomes escreve à segunda-feira, de 4 em 4 semanas

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