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Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

23/07/2023 08:00

O tapete de flores ainda é feito com o mesmo orgulho pelas gentes da aldeia, que colhem os melhores exemplares na manhã de domingo para engalanar a rua de todos os dias. A cama de raminhos de cedro, cortados nos fins de tarde durante a semana, dá o volume e deixa as pétalas coloridas postas em descanso, e alguma vaidade, para receber o Santíssimo na sua passagem.

A memória tem destas coisas, parece uma viagem no tempo que na verdade não o é bem. Um quadro que se repete, ano após ano, mas que já não é bem igual. A igreja já não enche como antigamente, culpa das festividades um pouco por toda a ilha, comenta-se, e parece que há menos canalha a correr pelo adro. Antes não havia grandes gadgets e o ponto alto das férias grandes era dançar à frente do palco os hits de verão e dar voltas à igreja vezes sem conta, em gargalhadas e segredinhos cúmplices com os amigos. A Festa do Senhor era um dos acontecimentos anuais mais relevantes, com os emigrantes a regressar em peso para agradecer ao santo as benesses que a vida longe de casa, dos familiares e dos amigos, trouxera. A fartura no espeto e as roupas, que então não se viam por ali, em destaque, e os fios e pulseiras de ouro para comprovar o sucesso fora dos limítrofes da fronteira da aldeia e do nosso pensamento.

Hoje, já ninguém está verdadeiramente longe. As redes sociais encurtam distâncias, mas não diminuem desigualdades. A aldeia parece parada no tempo, com personagens que já foram novas, vestidas de almas anciãs, e outras que, entretanto, moram apenas na memória dos que vão permanecendo por ali ou nas fotografias amareladas do sol nas lápides do cemitério, que é hoje um lugar de gente que se conheceu e não de quem se ouviu falar, como antes.

A visita guiada vem acompanhada da descrição de causas de morte. Tão novo, sofreu tanto, ninguém esperava, foi coisa ruim, um mal que lhe deu, coitada. E as caras familiares que jazem em paz, espera-se. É o nosso passado enterrado, com rostos à superfície, em fotografias amareladas pelo sol e acinzentadas das intempéries, a lembrar-nos de onde vimos e quem somos. Os hits dos anos 90 ainda se repetem e ecoam pelas veredas da aldeia. Tudo se repete e tudo muda, numa dicotomia que não se entende bem. A memória tem destas coisas, leva-nos de mãos dadas ao passado, num presente que tem quase tudo o que era, mas já não é aquilo que foi. Mas as flores continuam belas, envaidecidas e galanteias, na sua cama de cedro. Quase parece que sempre se esteve ali, mesmo quando os de fora já não são os outros e somos nós numa Festa do Senhor que se revisita, mas nunca mais se repete.

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