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Artigo de Opinião

HISTÓRIAS DA MINHA HISTÓRIA

12/11/2021 08:01

E todos os anos o meu pai se alegrava com a perspetiva de provar o vinho novo para atestar-lhe a qualidade, que, digamos a verdade, era pouca.

As parreiras lá de casa não eram muitas, nem de castas especiais. Apesar de não ser assunto do meu interesse, lembro-me de ouvir falar em jaqué, armum, uva americana e negra mole. Constituíam uma miscelânea-amostra de cepas que se esticavam até ao alto dos corredores de ferro, cravados em todo o redor da casa, e por eles se esparramavam. O meu pai empenhava-se no cuidado da sua ínfima produção vinhateira: podava, enxofrava, ou sulfatava e, quando os cachos amadureciam, esmagava-os no pequeno lagar que mandara construir no fundo do quintal.

No tempo que sabia apropriado, ainda toda a família dormia, e ele, com óculos de mergulho postos e apetrechado com um fole para enxofrar, ou com a máquina de sulfatar a tiracolo, fumigava as parreiras para defendê-las de pragas e doenças. Eu, que sempre tive sono de cão que dorme de orelha erguida, acordava com o suave puf, puf das pulverizações, e reconfortada pela familiaridade da cena, aconchegava-me e voltava a adormecer.

Quando o dia da vindima se aproximava, o que sobrara do vinho do ano anterior era transferido do barril para um garrafão enorme, cuja cobertura de vime já apresentava alguns rasgões, que passava a guardar algo que na nossa casa havia sempre com abundância: vinagre. Depois, os barris eram verificados, tratados com minúcia e, por fim, defumados com uma mecha incandescente que os deixaria prontos para receber o mosto, que neles ficaria a fermentar até ao dia de São Martinho.

No fim de semana decidido como apropriado, procedíamos à apanha das uvas, tarefa para a qual toda a família contribuía. Os cachos eram recolhidos nos recipientes que houvesse disponíveis e despejados no lagar, onde o meu pai os pisaria. Se aparecia algum amigo ou familiar, podia ter uma ajuda, de outro modo, entregava-se ele à tarefa e de bom grado o fazia, assobiando ou cantando em surdina, não só para manter o ritmo da pisada, mas também porque esse entoar preso entre a garganta e o palato, que a minha mãe denominava gonguice, era algo que ele fazia constantemente - um hábito que eu herdei e em que tantas vezes me surpreendo.

Conforme a manhã crescia, o mosto ia brotando espumoso como promessa de néctar. O resultado talvez não compensasse o esforço, mas era uma daquelas coisas em que o percurso é o mais prazeroso. O meu pai fazia-o, possivelmente como forma de reviver o tempo da sua infância, ou tão só por ser o Seu vinho e ficava feliz quando o oferecia a algum amigo e este o elogiava. Mas ainda mais se orgulhava de uma pequena porção do elixir vinícola, reservado num barril miniatura, obtido com a adição de um xarope que confecionava, com esmero e algum secretismo. Ainda assim, entre outros ingredientes, recordo que incluía: chá preto, passas e ameixa-seca. Era o vinho tratado, com pretensões a Madeira Wine e esse constituía uma predileção à parte.

Após semanas no frescor silencioso da arrecadação, chegava o dia de provar o vinho novo e o meu pai exultava. Nesse dia, sim, gostava de ter amigos e familiares para partilhar o momento e ouvi-los opinar sobre a produção do ano.

Por um daqueles caprichos do acaso, foi a 11 de Novembro, a data que ele tanto gostava de celebrar, que o meu pai partiu de entre nós, e o dia de São Martinho, tal como vinho, passou a ter sabor agridoce.

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