Durante a minha adolescência, como muitos da minha geração, acreditava num ideal de centro-esquerda, numa sociedade mais justa, mais igual, menos ferida por assimetrias gritantes. Via no socialismo moderado um caminho possível para esse mundo melhor. A realidade tratou de me desmentir!
O primeiro abalo chegou no início dos anos 90, numa viagem à então União Soviética. Para quem crescera a viajar apenas por países mais desenvolvidos que Portugal, a descoberta foi brutal, pois os supermercados tinham prateleiras vazias, a corrupção banalizada, alcoolismo à vista desarmada, as filas que se formavam à frente do recém-inaugurado e capitalista McDonald’s serpenteavam vários quarteirões do centro de Moscovo e sobretudo uma tristeza profunda estampada nos rostos. O “farol do progresso socialista”, afinal, iluminava muito pouco.
Mas foi Cuba, no final dessa mesma década, que destruiu o que restava de romantismo ideológico. Fui trabalhar para Havana durante 5 meses e vi, com os meus próprios olhos, a grande ficção que tantos intelectuais progressistas ainda hoje insistem em perpetuar. A pobreza era esmagadora, a repressão palpável, o controlo da informação absoluto. Direitos humanos? Um luxo importado que não tinha lugar na retórica revolucionária.
Mesmo na saúde, o orgulho máximo da propaganda, encontrei apenas ruínas. Tendo visitado, através do meu trabalho, todas as infraestruturas de saúde públicas da província de Havana, deparei-me com camas sem colchões, ausência de medicamentos, falta de anestesia, equipamentos avariados, degradação estrutural. Havia hospitais modernos, sim, mas esses eram reservados aos estrangeiros. Lembro-me de um amigo cuja mãe sofreu um AVC e precisava de um medicamento “Trental”. Encontrei o medicamento apenas num desses hospitais “vip”. Quando tentei dar-lhe dinheiro para ir comprar uma nova caixa, respondeu-me, sem surpresa: “Os cubanos não podem entrar aí.”
A proibição estendia-se também aos hotéis de luxo, inacessíveis a quem vivia na ilha. Visitei uma clínica para seropositivos onde os doentes eram internados compulsivamente. A imprensa funcionava como um altifalante único, repetindo as mesmas fantasias propagandísticas de aumentos mirabolantes da produção de açúcar, êxitos das pescas, o sistema de saúde mais invejado do mundo. Que adiantava o analfabetismo ser residual, se só se podia ler o que o regime permitia?
A internet era privilégio diplomático. Um médico especialista recebia o equivalente a 35 dólares por mês. Quando José Saramago recebeu o Nobel da literatura em 1998, ele que era uma das figuras públicas que apoiavam incondicionalmente este regime, o governo de Cuba enviou repórteres a Portugal para celebrar o prémio do escritor comunista, mas também “expor os horrores do capitalismo”, reduzindo, nas suas reportagens transmitidas na TV cubana, o nosso país a imagens de mendigos a vasculhar o lixo nas ruas do Porto, numa caricatura que só podia enganar quem nada mais conhecia.
O espírito totalitário surgia até nos detalhes. Conheci médicos cubanos destacados em Timor cuja primeira ordem, ao chegar, foi entregar os passaportes ao chefe da missão, não fossem fugir para um “inferno capitalista”. Para viajar de uma província a outra em lazer no fim de semana, precisavam de autorização que nunca era concedida.
Cuba conseguiu, de facto, criar uma sociedade igualitária. Mas igualitária por baixo, todos pobres, todos limitados, todos vigilados. Todos, menos os do partido, que vivem no conforto negado aos restantes. Ali, compreendi que a promessa socialista, quando aplicada sem liberdade, não produz justiça, mas apenas miséria, revestida de propaganda.