MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

12/11/2023 07:40

Não havia margem para ser de qualquer maneira. O magusto tinha de ser feito com rigor: As melhores castanhas separadas antes das chuvas fazerem estrago e a saruga farta, para lhe fazer de coberta dentro de um imaculado círculo de pedras. Era um regalo para os olhos o ritual da preparação. O avô Adelino era calado, mas meticuloso. Não havia tarefa que não desempenhasse com o brio de pintor perante a tela e a elegância de um bailarino em frente do seu público.

E por isso, tinha sempre a lenha cortada com fio de prumo e alinhada como um puzzle da natureza. Deixava-nos assolados de espanto e admiração, com os movimentos sincronizados do machado a cortar a madeira de árvores todas diferentes e que se tornavam cavacas iguais, depois de passarem pelos seus braços robustos. Tinha músculos a fazer lembrar os dos atores de filmes de ação, mas era também um poeta que fazia das tarefas mais ordinárias um soneto de rimas emparelhadas. Até na hora de desfiar o último golpe nas dezenas de porcos que sucumbiram às suas mãos, e que eram fonte de alimentação por um ano de famílias inteiras, fazia com a precisão de cirurgião e a implacabilidade só possível aos homens bons, justos e compassivos. Nenhum sofreria mais do que o necessário, nem que fosse preciso retirar público do auditório em que se transformavam os quintais onde ensaiava o seu passe de mágica. E na hora da desmancha, o mesmo sentido estético no corte das peças e no aproveitamento de todas as partes do animal, sempre com a lembrança da fome que lhe marcara a infância, numa casa farta em irmãos, mas parca de bens materiais.

Não se queixava e só a custo ia desfiando a sua história que começou junto ao calhau e acabou mais para a serra. Como aquelas vezes em que o peixe abundava em casa, quando o pai atirava bombas já na altura proibidas e o pescado vinha à tona e à mesa. Uma vez foi detido, esteve dias sem retornar a casa e serviu de emenda, contava, sorriso nos lábios e brilho nos olhos. "Ah tempo, tempo", rematava a conversa como quem enxota o passado. Não era homem de viver no ontem, era terra a terra, rego a rego, no presente que gostava de encarar com método. Não podia ser de qualquer maneira e não havia magusto como o dele. O corte era simétrico e repetido como numa fábrica. E no fim, quando a chama se extinguia, o seu rosto iluminava-se quando retirava os restos de carvão e as castanhas se apresentavam orgulhosamente sobreviventes da fogueira onde tinham estado. E a felicidade de nos deixar, finalmente, sujar as mãos, alertando para não nos queimarmos ao saborearmos aquela delícia era o último ato, numa peça onde era encenador e ator principal, mesmo sem querer. Com poucas falas, de quem nunca aprendeu a ler, mas escreveu um lindo livro da vida. "Ah tempo, tempo".

OPINIÃO EM DESTAQUE
Coordenadora do Centro de Estudos de Bioética – Pólo Madeira
18/12/2025 08:00

Há uma dor estranha, quase impossível de explicar, que nasce quando alguém que amamos continua aqui... mas, aos poucos, deixa de estar. Não há funerais,...

Ver todos os artigos

88.8 RJM Rádio Jornal da Madeira RÁDIO 88.8 RJM MADEIRA

Ligue-se às Redes RJM 88.8FM

Emissão Online

Em direto

Ouvir Agora
INQUÉRITO / SONDAGEM

Concorda com a entrega do Prémio Nobel da Paz a Maria Corina Machado?

Enviar Resultados
RJM PODCASTS

Mais Lidas

Últimas