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Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

11/06/2023 07:30

Era mais alta do que a média para aquele tempo. Ou talvez não fosse o tamanho. Fazia-se grande quando metia o molho de erva à cabeça e sempre, sem desalinho, seguia, destemida, o seu destino. Parecia sempre saber para onde ia, o que era estranho, porque a maior parte das mulheres daquela época, daquele lugar, eram mais de se deixar levar. Eram assim as coisas e ela também não as terá aprendido de outra maneira, mas ocupava, com naturalidade, o lugar que era seu.

O passo certo, rápido, mas nunca acelerado, nunca fora de tempo. Era assim ao domingo, quando escolhia os melhores vestidos, que a irmã lhe mandava da África do Sul, em padrões que não se viam por ali, e colocava o perfume de sempre, que comprava a granel na farmácia, para ir à missa, que assistia no banco onde ninguém ousava se sentar. Não por imposição, mas porque era assim, uma convenção informal, que resultava de nada mais do que a certeza de que as coisas são o que são. E era assim quando ela se impunha, fosse contra quem fosse, para fazer valer direitos que achava serem dela ou dos seus. Airosa, altiva, argumentativa. Ou quando comandava uma tropa de vizinhos para, em conjunto, avançarem com o alargamento e melhorias na vereda que lhes dava acesso a casa. Também assim era quando dava ordens aos homens na matança do porco ou na vindima, ditando a cadência, o esforço, a distribuição e os resultados. Até os filhos lhe nasciam com intervalos certos de sete anos, menos aquele que perdeu no parto e que nunca mais esqueceu.

O marido nunca a tratou por tu, embora não houvesse entre eles distância. Em mais de 50 anos de casamento, ele nunca deixou de usar a terceira pessoa, com reverência. Observava-a, dando espaço, resmungando com as ordens que ela dava, com o ritmo imposto, com os raspanetes, quando ele bebia um copo a mais ou lhe falhava nalgum pedido, mas nunca a contestava, mostrando que respeitar é um ato de amor.

Parecia nunca lhe faltarem forças, mesmo quando as lágrimas, com que embrulhava as injustiças e tristezas da vida, lhe corriam pela tez morena do sol, nunca perdia a aura de estrela-guia, trave-mestra, pedra basilar. Não se inibia de chorar em público, como daquela vez em que soube que pior que dar à luz um nado morto é a morte roubar um filho vivo. Recompôs-se, como era da sua natureza, para dar suporte aos seus.

Nunca ninguém a viu de calças e acho que nada sabia sobre igualdade de género ou empoderamento feminino. Penso que nunca lhe disseram que era uma líder. Mas quando vemos aquele lugar vazio na igreja, na família, na comunidade, não há dúvidas de que o foi mesmo sem nunca o saber. E não há legado mais belo.

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