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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

2/06/2023 08:00

O meu pai classificava como "mistério" as coisas que sentia ou pensava ou via mas não compreendia. Às vezes, sobretudo no seu último ano de vida, eu encontrava-o sentado numa cadeira no quintal, debaixo do alpendre, metido em si e na sua solidão, a observar o voo dos milhafres à volta dos eucaliptos do lado de lá da ribeira ou a matar moscas com uma pequena raquete de plástico ou a avaliar a passagem das nuvens no céu do Laranjal, e ele dizia-me assim:

- Esta noite não dormi quase nada.

E eu:

- Alguma preocupação?

E ele:

- Nenhuma.

Depois, avançava com uma espécie de ladainha, mais ou menos assim:

- As galinhas estão tratadas, o cachorro tem comer, as semilhas estão boas, as flores foram regadas, a reforma já chegou, eu não devo nada a ninguém, os filhos têm saúde e trabalho, a casa está em pé, o jantar foi bom.

Suspirava e dizia:

- Não percebo por que não consegui dormir.

E, por fim, rematava:

- É um mistério.

Naquela altura, o cancro estava a consumi-lo sem remissão e a grande velocidade e as dores seriam, com certeza, cada vez mais intensas, mas ele raramente falava da doença e muito menos da morte, a não ser para dizer que não tinha medo nem duma nem doutra, ao que se seguia o refrão "Ninguém é deste mundo", também muito habitual no seu discurso.

Eu concordava e fazia eco da sentença:

- Sim, ninguém é deste mundo…

Contudo, sentia claramente que uma parte substancial do mistério da sua insónia tinha a raiz fincada no espetro da morte, essa sombra fria e lenta que caminhava ao seu lado sob a forma de tumor há mais de cinco anos, indo com ele de quarto em quarto, do quintal à fazenda, da fazenda ao galinheiro, essa sombra silenciosa e sombria que o escoltava nos passeios a pé até às Courelas e nas idas ao Sidónio´s e, por fim, nas sessões de quimioterapia e radioterapia, essa sombra indelével, intransponível, inefável, que, no fundo, transporta a explicação final e absoluta da vida de qualquer indivíduo.

Mas, por outro lado, também é verdade que ele dizia aquilo desde sempre perante as coisas que o intrigavam.

- É um mistério.

Pois é.

Agora, porém, sou eu que me sento no banco debaixo do alpendre e sinto a morte ao meu lado. Não estou doente, pelo menos que saiba, mas ela está sempre ali, encostada a mim, de olhos postos no vazio, vendo exatamente o mesmo que o meu pai antes via - os eucaliptos, a ribeira, a curva da estrada, o voo dos milhafres. Sim, ela está ali e em toda a parte, divina e ubíqua, como se eu estivesse prestes a morrer.

Às vezes, em maré de poesia, sinto-a como se fosse a minha própria voz vinda de outra época, talvez de um passado antes de mim, ou de um futuro depois de mim, a minha voz vinda de um lugar onde eu nunca existi, a minha voz a dizer-me:

- Vais morrer hoje.

Já não sou hipocondríaco - essa foi uma doença da juventude -, mas ainda não sou capaz de afirmar com convicção que não tenho medo de morrer, de modo que me perco amiúde em pensamentos e emoções difíceis de descrever, nos quais todo o meu ser se mistura com o ser do mundo, gerando uma náusea descabida, uma vertigem sem fim, uma intoxicação brutal, que habitualmente termina numa lengalenga sussurrada, mais ou menos semelhante à lengalenga do meu pai:

- Não me falta nada, tenho mulher e amor, o dinheiro é pouco mas chega, o coração bate, as pernas andam, os olhos veem, tenho comida e roupa todos os dias, o emprego é estável, a vida é simples, a ilha é bela.

Depois, suspiro e digo:

- Não percebo o que vem a ser esta angústia.

E, por fim, sou forçado a rematar:

- É um mistério.

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