Esta noite sonhei que vivia num país chamado República Insular de São Barnabé, que no fundo era a Região Autónoma da Madeira, mas independente e virada ao contrário e cheia de coisas que aqui não existem, como por exemplo uma linha férrea à volta da ilha, e nesse sonho eu estava num restaurante e tinha acabado de almoçar e estava a olhar pela janela e dali avistava a serra coberta de giesta em flor, tal como se encontra agora, e o céu era azul intenso, com algumas nuvens esfiapadas que pareciam esqueletos de animais pré-históricos, e na rua havia um jacarandá imponente, também em flor, quando de repente apareceu um homem à minha frente e disse:

- SISBAR.

Ao mesmo tempo, mostrou-me a identificação.

Eu observei o intrincado emblema da polícia secreta da República Insular de São Barnabé, onde se misturavam, em estilo cabalístico ou maçónico ou esotérico, uma esfera armilar, uma cruz de Cristo, um mapa antigo do arquipélago, um pentagrama invertido, um til com quatro ramos, simbolizando a vegetação endémica e os quatro cantos do mundo, e, pela primeira vez na vida reparei nisso, um papagaio, e aquilo estava tudo em movimento.

Como é possível nunca ter reparado neste papagaio? - Pensei de boca aberta dentro do sonho. E depois acrescentei: Mas que diabo faz um papagaio no emblema da polícia secreta? E suspirei: Se ainda fosse um melro-preto…

- Faça o favor de nos acompanhar - disse o agente.

Entretanto, outro agente abeirou-se da mesa e via-se que era uma pessoa de natureza mais afável, uma pessoa capaz de sorrir com a perfeição de uma criança ou, para ser mais objetivo, uma pessoa capaz de matar com a inocência de uma criança. Ele disse:

- Não se preocupe, senhor Caires. Não o vamos prender. Veja lá que até lhe pagámos a conta.

- O que se passa? - Perguntei.

Neste momento, eu já estava muito nervoso naquele maldito sonho, já estava a mexer-me bastante para ver se acordava, e a voz saiu-me como se fosse um rumor antigo. Uqpass, qualquer coisa assim. Uqpass. Um rumor do tempo do homem de Neandertal. Um rumor que ficou fechado dentro de uma gruta durante milhares de anos. Uqpass.

O agente frio agarrou-me pelo braço e fez-me erguer à força, como nos filmes de gangsters a preto e branco. Ao levantar-me, olhei para o dono do restaurante, que estava imóvel atrás do balcão e, curiosamente, percebi que era o atual presidente do nosso Governo Regional. Uma coisa estapafúrdia, mas isto era um sonho.

No decurso dos primeiros passos rumo à porta de saída do restaurante, lembrei-me dum peixinho que vi quando fui à praia pela primeira vez, em miúdo, e do qual já falei numa crónica, na crónica número 11, para ser mais preciso, publicada na edição de 12 de novembro de 2015, com o título "Tudo o que um peixe me ensinou". Depois, lembrei-me também da minha feição no dia em que parti para África, em janeiro de 2008, para ser voluntário numa missão católica na Alta Zambézia, e achei que estava louco e senti a força que me impeliu para a selva a vibrar outra vez dentro de mim.

- Vamos. Não tenha medo - disse o agente afável.

O peixinho fugiu sem me dizer adeus, pensei enquanto ia naquela caminhada onírica em direção à porta do restaurante. Depois, virei-me para trás e, estupefacto, reparei que continuava sentado à mesa, mas num estado esquisito, como se fosse a estátua da inexistência. Todos nós somos estátuas, pensei. Não nos podemos mover porque somos feitos de pedra. Somos pedras tumulares e temos inscrições absurdas talhadas na nossa pele - um nome e duas datas. É por isso que todos parecemos loucos em certas ocasiões, por causa daquelas cicatrizes na nossa pele de pedra.

Antes de sair, o dono do restaurante, que de facto era o atual presidente do nosso Governo Regional, acenou-me com tristeza, como se eu estivesse a partir para sempre. E eu pensei assim: O gajo agora é empresário de restauração na República Insular de São Barnabé.

Raio de sonho, porra!