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Artigo de Opinião

ÀS VEZES VOO. ÀS VEZES CAIO

Jornalista

13/03/2023 08:00

Se nada eu encontrar no regresso a casa, hei-de voltar-me para o mar, hei-de cair sobre o dorso da rocha que me mostre a sua descansada mão de escamas. Não hei-de tentar a memória em busca das fundições do ventre ou do sal dos ossos, ainda que as minhas pernas leiam a estrada com a destreza das mães que se inclinam para sempre sobre os filhos que não sabem.

Se a memória for a faca que já não corta, a língua que já não beija, eu hei-de ferir-me da cinza de um único golpe. A terra há-de bater o meu corpo antes da morte e a queda iniciar-se-á do chão. As minhas mãos serão escultoras da remissão da sombra espalhada no fundo do mar, num tempo em que já nada saberei sobre horas, dias ou estações, nesse tempo em que nem o frio nem o calor abrirão a pele.

Só hei-de lembrar-me do dia da tua chegada, da perfeição benigna das tuas mãos tão certas; o mar engolindo ternamente o meu corpo. Estarei, então, exilada dos lugares comuns, confinada ao teu corpo e à terra morna do teu sangue. Tu, criança fontanária e adulto que eu não fui.

Se eu não te encontrar no regresso a casa, não hão-de restar-me nem a árvore nem os vestígios do riso e do pulmão esmorecido, nem a praia, nem a trave com a minha cabeça pendida a favor do vento. Nem nada. Se por acaso um jardim entrar nos meus ouvidos, talvez o som e o silêncio possam, de novo, descer da minha cabeça e levantar-se do lençol lavado. E talvez eu me encante dessa espera restituída, do fio de cabelo tangente à noite mais escura, à flor mais alta acima dos olhos de Deus.

O que eu sei sobre o regresso é da sua rápida inclinação sobre a morte, do seu fundo de limos e sóis da primeira infância, num lugar quente e escuro onde o medo se divide para sempre depois do corpo.

Se nada eu encontrar no regresso a casa, a terra há-de cair branca e grave, zunindo as mãos de Deus dentro do mar, escavando o riso do peixe até à lábil costela das mães anteriores. E um só nome há-de esvaziar a carne e desolar a escama divinal, lacerar a casa pelo fogo, como se o mundo recomeçasse, nunca da beleza, mas da sombra de uma mão colhendo o mar.

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