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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

24/02/2023 08:00

Quando eu era pequenino não gostava de comer, era biqueiro, fazia focinho a tudo e a minha mãe via-se aflita para me alimentar. Na hora das refeições, mostrava-me coisas para me distrair - um alicate, um escopro, uma torquês - e, enquanto o objeto me encantava, eu lá engolia umas colheradas de sopa ou de papa de milho.

Um dia, como nada estava a dar resultado - nem martelo, nem parafusos, nem fita métrica - a minha mãe foi buscar um coelhinho para me entreter. O meu pai adorava coelhos e fazia criação para consumo próprio, de modo que havia sempre uma ou duas ninhadas em crescimento. Coelhinhos lindos, amorosos, com o pelo macio e o nariz sempre em movimento.

A minha mãe trouxe um para a mesa, para me intrujar. Numa primeira fase - contava ela - a coisa resultou, mas às tantas eu perdi o interesse e dei-lhe uma tapona na cabeça, assim de repente, como fazem as criancinhas de colo quando se aborrecem com os brinquedos. Zás. O coelhinho desacordou e ficou como morto. A tigela a meio e a minha mãe aflita, pensando na reação do mestre Gabriel quando chegasse a casa e desse com o bicho azougado?!

- Foi o teu filho que o matou - diria ela.

Felizmente, o coelhinho recuperou e viveu saudável até à idade adulta, para então acabar na panela. O meu pai sabia cozinhar muito bem coelho e desse petisco eu sempre gostei, tal como gosto de peito de frango guisado com especiarias da mercearia do Bento e de atum aos cubos cozido com semilhas, malagueta e azeite. São pratos que me fazem salivar, mas cujo sabor original nunca mais tornei a sentir, porque os cozinheiros - a mãe, as tias, o pai - estão todos mortos. As receitas perduram, pelo menos na lembrança, mas a mão que mexe agora o tacho, seja ela qual for, perdeu-lhes a alma.

De certa maneira, a magia da comida reside na memória, como lá reside a essência de qualquer ser humano. É na memória que se encontra o melhor e o pior de cada indivíduo, ou seja, tudo o que ele queria ser e não foi, tudo o que foi e não queria ser. Além disso, a memória será sempre maior, muito maior, do que o tempo que nos resta para viver e, já agora, para comer.

Tirando atum bem cozido e bacalhau de qualquer maneira, eu detesto peixe e tudo o que vem do mar - exceto sereias, dizia em épocas de galhofa grosseira. Contudo fartei-me de comer postas de pescada na tropa, em Mafra. Era um horror, mas eu tinha de me alimentar. O processo era este: comia a pescada toda duma vez, tão depressa que mal sentia o sabor, e a seguir bebia um caneco de vinho de assentada para eliminar resíduos e odores da boca. Depois, saboreava as batatas calmamente. Sempre que o rancho era peixe, procedia desta forma. Só nunca fui capaz de comer polvo. Neste caso, trocava a minha dose com os outros por ovos, legumes, fruta.

Um dos melhores pratos que comi na vida foi uma bacalhoada nas Furnas, nos Açores, feita num daqueles buracos fumegantes à beira da lagoa e servida ali mesmo, entre bruma e enxofre, numa época em que aquilo era de facto uma raridade, uma excentricidade, acompanhado por uma garrafa de vinho tinto Dão Grão Vasco. Foi divinal, inesquecível, irrepetível, tal como aconteceu com o primeiro prato de comida chinesa - chop suey de frango - num restaurante que havia no Centro Comercial Olimpo e eu utilizei os pauzinhos sem qualquer dificuldade, até no arroz, como se tivesse nascido chinês noutra vida. Memorável foi também a primeira pizza, algures na Zona Velha da cidade, no final dos anos 80, em que confundi cogumelos com azeitonas.

As palavras aguçam o apetite e agora trazem-me de volta ao palato refeições simples e extraordinárias em várias partes do mundo, de Moçambique ao Tibete, de Santiago do Chile a Salamanca, de Cabo Verde ao restaurante em frente da minha casa, mas nenhuma me regala tanto a saudade como as feitas em casa, naquele tempo, quando eu não gostava de nada e para comer precisava de me distrair com alguma coisa, nem que fosse um coelhinho…

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