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Artigo de Opinião

ÀS VEZES VOO. ÀS VEZES CAIO

Jornalista

24/10/2022 08:00

Enquanto o chão treme, as minhas mãos estabelecem a noite sobre a insónia do teu corpo. Mas estas mãos morrem agora tão depressa que o tempo se ergue a partir dos meus pés como um muro incalculável e intransponível, abrindo ao meio o ninho da primeira ave. Sento-me caída no fim da cama de lavado onde os corpos ardem de frio. Daqui, observo os mortos e os vivos, os animais imponentíssimos que caem do céu abanados pelo vento; o meu rosto sobe para o beijo na fronte de Deus enquanto a noite adormece dentro dela o teu corpo. Não imagino nada mais belo do que este desvanecimento da juventude em que as mãos se retraem procurando decantar a impossibilidade, em que o corpo se move para dentro de um lugar onde, se tivermos sorte, a beleza começa a fazer sentido. "Que grande erro, desejar a clareza acima de tudo." Este verso de Louise Glück é quase estrutural; uma espécie de brilho de ópera a reter a total impossibilidade que somos ao longo da travessia por cada uma das nossas mortes.

Aqui sentada, o meu corpo não tem senão mãos; ainda que os meus dedos durmam desassossegados, tão pouco íntimos já; sem a blandícia, sem o riso profundo da tua cabeça. É triste este torpor da cidade onde deixei de saber perder-me, o espantoso definhar de uma vocação distante e trémula que se atira ao meu peito como o corpo mortificado de um amante, ou talvez o espúrio derrame do principal veneno. Inventarei uma linguagem própria para erguer os olhos da carne, para abraçar com as pernas o incêndio nocturno do mar. A sua louca e insuportável rouquidão. E as minhas mãos hão-de sobreviver ao arvoredo, hão-de escrever o movimento contrário ao sangue amornado entre os pêlos alumiando o centro da casa, o celestial terror do teu corpo sobre o meu. Querido. Vejo-te nu ainda, se só na nudez podemos amar alguém, ferir-lhe a espinha pela pele que abrimos na fuligem de um grito. A mão aberta de encontro à pedra.

Eis-me aqui. Vislumbro exactas falhas nos lugares onde, durante uma eternidade, supus a mão de Deus, ou talvez o seu abandono. Nunca mais fui capaz de despir-me na frente dele, e admito neste gesto o despontar de um pensamento eminentemente frívolo lavrado pela ternura de um filho arrancado ao hálito da infância. Agora entendo; é impossível amar um deus intocável. Salvar o corte inicial da força do corpo.

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